segunda-feira, 2 de novembro de 2009

...Em Dia de Finados, recordar a instalação do Cemitério Público em T. Vedras


Torres Vedras e a Criação de seu Cemitério Público

(excerto do trabalho, da nossa autoria, apresentado no Congresso de História Local em 2003, intitulado “Elementos para o estudo da Saúde Pública e da Criação dos Cemitérios Públicos em Torres Vedras no século XIX”)

A primeira proibição de enterramentos junto dos lugares de culto na Europa foi promulgada em França por Napoleão, por decreto de 12 de Junho de 1804.
Em Portugal a primeira vez que se ordenou a criação de cemitérios públicos foi através dos alvarás de 27 de Março de 1805 e 18 de Outubro de 1806, mas essas ordens não se cumpriram.
Só após a vitória do regime liberal e com a publicação do Decreto de 22 de Setembro de 1835, da autoria do Ministro do Reino Rodrigo da Fonseca Magalhães, se legalizou em definitivo a criação de cemitérios públicos em todas as povoações.
Mas a legislação mais completa ficou a dever-se a Costa Cabral, ao promulgar o decreto de 18 de Setembro de 1844 que proibia expressamente o enterramento dos “mortos dentro de qualquer igreja, ou capela da Freguesia, ou Concelho, onde houver cemitério público” (TORRES, Ruy de Abreu, “Enterramentos”, in Dicionário de História de Portugal, (Dir. de Joel Serrão), Vol. II, ed. Livraria Figueirinha, Porto, 1985, pp. 402-403.
Como se sabe, este decreto foi um dos motivos da “Revolta da Maria da Fonte” em 1846, mas, apesar desse contratempo, aquela decisão acabou por se cumprir nos anos seguintes, implantando-se mais ou menos rapidamente conforme a região do país.
O Norte foi a região que mais resistiu àquela medida. Em Lisboa os primeiros cemitérios públicos, o do Alto de S. João e o “Dos Prazeres”, já tinham sido inaugurados em 1835.

Em Torres Vedras a inauguração do primeiro cemitério público levou algum tempo, mas sem que se tivesse registado a resistência de outros lugares.
Aqui, a construção de cemitérios fora dos adros das igrejas era esporádica e andava associada a crises epidémicas, como sucedeu em 1810, solução geralmente aceite sem contestação conhecida.
Sabe-se contudo que, nos finais do século XVIII, em 1795, quando, por ocasião de uma peste que se declarou com especial violência na localidade da Ponte do Rol e se procurou evitar os enterramentos na igreja paroquial, houve alguma resistência da população.
Em 11 de Fevereiro desse ano o médico do partido da Câmara Manoel Tavares de Macedo, considerando que “hera tal o cheiro de corrupção que exhalava a Egreja da Ponte do Rol por cauza dos cadaveres dos fallecidos da epidemia ali enterrados, mas sem a profundidade necessária”, requeria a proibição de se “sepultar outros cadaveres dahi em diante na dita Egreja”.
Os cadáveres das vítimas daquela epidemia acabaram por ser sepultados na Ermida de Nª Sª da Nazareth de Fonte Grada, “porque o cemiterio, que se pretendeo fazer no sítio das Faias junto ao lugar, não pôde hir avante por causa do povo” (Anotadores de Madeira Torres – parte económica, manuscrita, 4º caderno, folhas 2 e 3).
Na vila de Torres Vedras o único local de enterramento fora das igrejas paroquiais era junto de outra Igreja dentro da vila, a Igreja da Misericórdia, chamado de cemitério da Misericórdia situado entre a Igreja e a rua da Misericórdia. Nele se enterravam os pobres falecidos no Hospital,.

A primeira tentativa de estabelecer um cemitério público em Torres Vedras data de 1805 quando, por alvará de 23 de Agosto, se concedeu à Ordem Terceira, até aí instalada na Igreja de S. Tiago, a Ermida dedicada a S. João Baptista e as casas contíguas, então em ruínas, para aí se instalar na condição de estabelecer junto da ermida, no “pequeno Quintal das casas e no bocado de terreno público” aí existente “um cemitério para as quatro Freguezias e Hospital da villa”( Madeira Torres e anotadores – parte histórica, pp. 161 a 166).
Logo em 1807 a cerca dessa ermida serviu de cemitério às tropas francesas falecidas no hospital que se tinha estabelecido no Convento da Graça e, mais tarde, em 1811, aí foram sepultados soldados e oficiais ingleses (Madeira Torres– parte histórica, p. 163.
Contudo, em 1837 ainda não se tinha estabelecido naquele local o cemitério público para os habitantes da vila, motivo pelo qual o administrador do concelho enviou nesse ano um ofício ao executivo municipal para que ordenasse à “Ordem 3º desta villa para fazer cemitério publico junto da Irmida de S. João” e designasse um dia para se reunirem com o representante daquela corporação (Lº de Acórdãos da Câmara, nº 27 (1834– 1842), sessão de 18 de Março de 1837 AHMTV).
Essa reunião realizou-se no dia 1 de Abril de 1837, com a presença do administrador do concelho, dos vereadores e do “Ministro da (...) veneravel ordem como representante da mesma Jorge Lourenço Nunes da Cunha” para , na conformidade do alvará de 26 de Agosto de 1805, se escolher o dia para “proceder a verificação do terreno mencionado no ditto Alvará”.
Marcou-se o dia 4 ou o dia 5 de Abril para esse efeito (Lº de Acórdãos da Câmara, nº 27 (1834– 1842), sessão de 1 de Abril de 1837 AHMTV), mas, em 26 de Maio, o administrador do concelho voltou a oficiar a câmara para que esta o informasse “circonstancialmente do local destenado para cemitério, sua extenção, as obras nelle feito, e quaes os obstaculos que impediam a sua execução” (Lº de Acórdãos da Câmara, nº 27 (1834– 1842), sessão de 31 de Maio de 1837 AHMTV).
Na vereação de 17 de Junho o executivo tomou conhecimento de um ofício “do Ministro da Ordem 3ª desta villa” participando “não poder continuar com a obra do cemitério no citio de S. João emquanto se não colherem as novidades pendentes por não ser praticavel a condução de pedra e do cal que ainda se está cozendo”( Lº de Acórdãos da Câmara, nº 27 (1834– 1842), sessão de 17 de Junho de 1837 AHMTV).
No princípio do ano seguinte as obras estavam interrompidas “por causa de hum requerimento de alguns moradores” (Lº de Acórdãos da Câmara, nº 27 (1834– 1842), sessão de 24 de Janeiro de 1838 AHMTV), cujo teor desconhecemos, mas dias depois o executivo deliberava, após examinar “todos os papeis constantes de representaçoens e auttos de vestoria a que procedeu”, oficiar a mesa administrativa da “veneravel ordem terceira” para levar a efeito a “faetura do cemitério do citio de S. João”( Lº de Acórdãos da Câmara, nº 27 (1834– 1842), sessão de 31 de Janeiro de 1838 AHMTV).
Contudo, em Agosto de 1839 encontrava-se aquela obra suspensa, desta vez devido a um parecer da Junta de Saúde, desaprovando o local de S. João para a construção do cemitério, pelo que a Câmara, procurando um lugar alternativo, propunha a escolha do sítio do “extinto Convento da Graça, podendo construir-se em huma parte da serca do mesmo convento, que hoje pertence à Fazenda Nacional”( Lº de Acórdãos da Câmara, nº 27 (1834– 1842), sessão de 7 de Agosto de 1839 AHMTV).
Ainda na sequência deste novo projecto, o executivo deliberou “que se fisesse huma representação a Sua Majestade a Raynha pedindo lhe queira dignar-se mandar dar-lhe o claustro do extinto Convento da Graça para cemitério de pessoas que falecerem nas quatro freguesias e Hospital desta villa por alli se encontrarem todas as proporçoens que se requerem para tal fim sem despesa do Municipio” (Lº de Acórdãos da Câmara, nº 27 (1834– 1842), sessão de 28 de Agosto de 1839 AHMTV).
Mas também esta alternativa se gorou, retomando-se o projecto inicial de construir o cemitério público no lugar de S. João.
Contudo, em 1845 ainda se continuava a arrastar o processo de construção do cemitério, pois nesse ano a vereação da altura voltava a ordenar que “se oficiasse ao Ministro e mais Irmãos da Veneravel Ordem Terceira desta villa pedindo-lhe hajão de declarar com a maior brevidade qual tem sido o obstaculo que até hoje se lhe tem offerecido (...) para levar a effeito a construção do cemitério que são obrigados a fazer junto à Irmida de S. João”(Lº de Acórdãos da Câmara, nº 28 (1842– 1856), sessão de 8 de Janeiro de 1845 AHMTV). Ao que parece a situação continuou a arrastar-se ao longo desse ano, sem solução à vista, notando-se na linguagem usada num acórdão dirigido ao “Ministro e mais mesários da Venerável Ordem 3ª”, em Julho desse ano, um tom quase ameaçador, mandando oficiar os representantes daquela corporação que “até 15 do mês próximo” deviam “continuar na construção do cemitério até sua conclusão, e não cumprindo se daria conta ao Governo de Sua Majestade e se usaria dos meios competentes a fim de se levar a effeito a começada obra” (Lº de Acórdãos da Câmara, nº 28 (1842– 1856), sessão de 12 de Julho de 1845 AHMTV).
Tal intimação não produziu resultados já que a vereação, em sessão realizada em 25 de Outubro desse ano, resolveu remeter “ao Governo Civil todos os papeis que dizem respeito ao cemiterio publico desta villa de onde vinha a obrigação em que se acha a Ordem Terceira de fazer cemitério à sua custa” (Lº de Acórdãos da Câmara, nº 28 (1842– 1856), sessão de 25 de Outubro de 1845 AHMTV).
Só depois do período politicamente turbulento de 1846 – 1847 é que se registam alguns progressos que conduziram à conclusão daquele projecto.

Em finais de 1848 ficou finalmente edificado o cemitério público junto à ermida de S. João, “em virtude d’ordens do Governo dirigidas à Câmara obrigando-se a fazel-o” Anotadores de Madeira Torres – parte Histórica, p. 160).
Foi necessário ainda ultrapassar um último obstáculo, este de ordem religioso.
Como no terreno do cemitério público tinham sido enterrados “protestantes”, isto é, soldados ingleses da guerra peninsular, a Câmara teve de recorrer às entidades eclesiásticas para desbloquear o impedimento que esta situação provocou entre os cidadãos de aceitarem a realização de funerais para o novo cemitério.
Só uma ordem do Cardeal Patriarca, autorizando o reverendo “vigário da vara do Arciprestado de Torres Vedras” a proceder “à Benção de Reconciliação do terreno destinado para o cemiterio ecclesiastico commum” desta vila, permitiu que a sua utilização fosse aceite pelos habitantes de Torres Vedras (Lº de Acórdãos da Câmara, nº 28 (1842– 1856), sessão extraordinária de 14 de Novembro de 1848 AHMTV).
Ainda antes da sua inauguração decidiu-se alargar a área prevista para o cemitério público, ajustando-se com Aleixo José Bernardes a compra de um pedaço de terreno, “ pelo lado nascente e norte” e “pela quantia de cinco mil réis” (Lº de Acórdãos da Câmara, nº 28 (1842– 1856), sessão 17 de Novembro de 1848 AHMTV).
O primeiro enterramento no novo cemitério público teve lugar no dia 30 de Junho de 1849 (Anotadores de Madeira Torres – Parte histórica – pp. 166 e 167.
A abertura do novo cemitério provocou um conflito com a Santa Casa da Misericórdia, que pretendia continuar a sepultar os falecidos no hospital no seu cemitério privado, pelo que, por denuncia do município, o Ministério do Reino ordenou ao Governador Civil de Lisboa, por ofício de 7 de Outubro de 1849 que expedisse “as ordens que tiver por conveniente para que” cessassem “no cemitério da Misericórdia quaisquer enterramentos, porque todos se devem effectuar d’ora em diante no Cemitério Público” (Lº de Acórdãos da Câmara, nº 28 (1842– 1856), sessão de 26 de Outubro de 1849 AHMTV.).
A entrega da administração do Cemitério Público à Ordem Terceira foi oficializada por ordem do Ministério do reino de 13 de Outubro de 1849 (Lº de Acórdãos da Câmara, nº 28 (1842– 1856), sessão de 11 de Dezembro de 1849 AHMTV).

Tendo-se arrastando durante tanto tempo a concretização do estabelecimento de um cemitério público na vila, desconhecemos quase por inteiro o que, sobre esse assunto, se passou nas freguesias rurais do concelho.
Uma primeira ordem para estabelecer cemitérios em todas as paróquias do concelho data de finais de 1838 (Lº de Acórdãos da Câmara, nº 27 (1834– 1842), sessão de 24 de Janeiro de 1839 AHMTV).
Marcando-se várias datas para se examinar os terrenos desses cemitérios elas foram sucessivamente proteladas e só em Setembro de 1839 se realizaram as primeiras vistorias aos terrenos onde se deviam construir os cemitérios das freguesias rurais do concelho(Lº de Acórdãos da Câmara, nº 27(1834– 1842), sessão de 28 de Agosto de 1839 AHMTV).
É preciso esperar pelo ano de 1842 para se encontrar de novo referência a este assunto, quando se mandou “examinar os trabalhos dos cemitérios nas várias paróquias”(Lº de Acórdãos da Câmara, nº 27(1834– 1842), sessão de 3 de Fevereiro de 1842 AHMTV).
Em 1855 ainda não estavam construídos os cemitérios públicos na maior parte das freguesias, como se conclui do conteúdo de um ofício do Governo Civil mandando estabelecer, para prevenir da possibilidade da chegada da epidemia de cólera, “um cemitério em, pelo menos cada uma das freguesias rurais” (Lº de Acórdãos da Câmara, nº 28 (1842– 1856), sessão de 29 de Agosto de 1855 AHMTV).
Contudo, quando em 1869 se publicou o primeiro mapa estatístico nacional sobre as condições de enterramento no país, com dados de 1862,( Ministério da Justiça e dos Negócios Eclesiásticos, Mappas Estatísticos dos Baptismos, Casamentos e Óbitos que houve no Reino de Portugal durante o Anno de 1862, Lisboa, Imprensa Nacional, 1869)
neste concelho já não se efectuavam enterramentos fora de Cemitérios Públicos, ao contrário, aliás, do que ainda acontecia nalgumas regiões do país.

Os distritos de Lisboa e Leiria eram ainda um excepção no país. No primeiro, 98 % dos enterramentos eram feitos em cemitérios públicos e no segundo essa percentagem era de 96,3. Contudo, em 7 distritos, essa percentagem não chegava aos 60%, sendo os casos mais graves os dos distritos de Braga, onde essa prática apenas se aplicava em 6% dos enterramentos, de Viana do Castelo, com 17,6%, de Viseu , com 44,6% , de Vila Real, com 44,6% e do Porto com 46,7% (CABRAL, João de Pina, e FEIJÓ, Rui G., “ A Questão dos cemitérios no Portugal Contemporâneo”, in A Morte no Portugal Contemporâneo, ed. Querco, Lx. 1985, pp.175 a 208).

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