Aproveitando algum clima
de abertura proporcionado pelo início da chamada “Primavera Marcelista”, António Augusto Sales lançou,
nas páginas do “Badaladas”, em 1 de Março de 1969, um debate com a designação
de “Quem tem medo da palavra cultura?”.
No artigo inicial, António
Augusto Sales, depois de traçar algumas ideias sobre o conceito de cultura, formulou
um conjunto de interrogações:
“Assim, em termos de cultura qual será a
posição ocupada pela vila ou a que se prepara para ocupar de acordo com as suas
actuais possibilidades? Haverá um equilíbrio entre as manifestações de carácter
intelectual e as ambições da sua população? Como funcionam as diversas
associações neste capítulo particular? Haverá uma atitude dinâmica ou de
apatia? Em resumo: em Torres Vedras quem
tem medo da palavra cultura? .
“Está aberto o processo –
está aberto o debate (…)”.
Ao longo de várias semanas
as páginas do jornal “Badaladas” abriram-se a um vivo e animado debate, de onde
se destacaram os seguintes artigos e colaboradores:
- 1 de Março – António
Augusto Sales – “Quem tem medo da palavra cultura?”.
- 8 de Março – Venerando
Ferreira de Matos – “Cultura e primavera” (uma metáfora indirecta à “primavera
marcelista”); Dr. Ruy de Moura Guedes – “Cultura- necessidade humana”;
- 15 de Março – António
Augusto Sales - “Quem Tem Medo da palavra Cultura?”;
-22 de Março – Moura
Portugal – “A Cultura, essa inestimável fonte de conhecimento humano”; António
Augusto Sales – “Quem tem medo da palavra Cultura?”;
- 29 de Março – D’Andrade
Santos – “Cultura ou uma focagem sintética à Biblioteca de Torres Vedras”;
Gomes Miranda – “Torres, Progresso e Cultura”.
-12 de Abril – António
Augusto Sales - “Quem tem medo da palavra Cultura? Está aberto o Processo!”;
Saldanha da Gama - “”Cultura” – a Câmara Municipal Informa:”; A Câmara
Municipal “O Cinema instrumento de Cultura”;
-19 de Abril – D’Andrade
Santos – “”Cultura” Sou D’Andrade Santos e venho responder a uma informação dos
Ex.mos Senhores da Câmara Municipal”; Dr. Augusto Troni – “A Cultura e os
Géneros”; Venerando de Matos – “Uma Biblioteca ao sol e às moscas”;
-26 de Abril – Moura
Portugal – “Aberto o processo- A Cultura estimula e valoriza”; António Augusto
Sales – “Quem tem medo da palavra Cultura? – A propósito de uma informação
camarária despropositada e de três respostas a que deu origem”; Dias Ruivo –
“Resposta do responsável do “Suplemento” de Badaladas”; Gomes Miranda –
“”Cultura” – A informação da Câmara”; Venerando de Matos – “Algumas sugestões
sobre Cultura”;
- 3 de Maio – Dr. Ruy de
Moura Guedes – “Cultura Viva”; António Augusto Sales – “Quem tem medo da
palavra Cultura? – A Física depõe sobre o processo da Cultura em questão” e “A
propósito de uma pergunta e de uma resposta sobre o “Suplemento” de Badaladas”;
Venerando de Matos – “Honestas intenções – Variações sobre Cultura”;
- 10 de Maio – Gomes
Miranda – na sua habitual secção “Torres e o Mundo” faz referência a temas do
debate;
- 17 de Maio – Gomes
Miranda – “Torres, o Homem e a Cultura”;
- 24 de Maio – Dr. Afonso
de Moura Guedes – “Cultura e Participação”;
- 31 de Maio – Um militar
torriense ausente na Madeira – “Depõe um operário no processo Cultural em
Torres Vedras”; Gomes Miranda – “Cultura em Torres Vedras” (integrado na sua
secção “Torres e o Mundo”).
- 7 de Junho – António
Macieira Costa - “Mas…que Cultura?”;
- 14 de Junho – António
Augusto Sales – “Quem tem medo da palavra cultura? – Serenamente…ainda uma
palavra”.
- 23 de Agosto – Venerando
de Matos – “Cultura – uma pedrada no charco…”;
- 30 de Agosto – De
Carvalho – “Cultura”;
Depois de um debate vivo
sobre o assunto, nas páginas daquele semanário, António Augusto Sales concluía
em 14 de Junho:
“Cá na minha, entendo que,
o que era para o jornal já nele foi dito. Se não passarmos desta fase a outra
mais concreta e prática não conseguiremos sair da cepa torta. Ora nós
precisamos é de coisas práticas, pois os discursos são apenas uma forma
delicada de camuflarmos a verdade. E como a paz parece reinar de novo entre os
espíritos e a lucidez deseja dar lugar à paixão, admito que seja tempo de
falarmos da verdade tratando das coisas”.
E, de facto, aproveitando
também alguma da abertura politica do momento, o debate teve efeitos práticos,
envolvendo alguns dos seus mais activos participantes na concretização de
algumas importantes iniciativas.
Logo em Novembro desse ano
foi lançado, nas páginas do “Badaladas”, o suplemento “Oeste Cultural”, dirigido por
Andrade Santos, integrado na edição de 29 de Novembro de 1969 no “Badaladas”. Essa
efémera publicação subintitulava-se
“Suplemento de Literatura-Arte-Pensamento-Acção”.
Logo na sua primeira
edição propunha-se fazer um inquérito aos “problemas socio culturais que fazem
estação em Torres Vedras”.
José Cardoso Pires e Maria
Teresa Horta foram dois dos colaboradores dessa primeira edição.
Depois de uma segunda
edição em 14 de Março de 1970, esse suplemento foi suspenso por divergências
entre a direcção do jornal e os responsáveis pelo “Oeste Cultural”, situação
que foi abordada por Andrade Santos numa entrevista com o padre Joaquim Maria
de Sousa:
“Para mim um Suplemento
Cultural é uma coisa que abrange outros domínios que não os regionais,
estende-se a um conteúdo universal. Por isso o “Oeste Cultural” pretendia que
nele colaborassem intelectuais de todo o país, que falassem de problemas que
afectam o nosso limite geográfico, que escrevessem sobre as coisas do mundo.
Mas não nos entendemos [com o director do “Badaladas”], isso já foi aqui dito
quando concordámos cancelar a publicação do “Oeste Cultural” (1).
Se essa foi a justificação
oficial para essa suspensão, não terá sido estranha à mesma a pressão, por
parte das autoridades, sobre o jornal, como se revela por um relatório da PIDE
datado de 18 de Março de 1970, referindo Andrade Santos com tendo sido
“elevado, pelos seus companheiros “oposicionistas”, a Director dum suplemento
intitulado “Oeste Cultural”, que junto os n.ºs 1 e 2, inserto no semanário
local “Badaladas”.
“Sendo este jornal de
tendência religiosa e dirigido pelo padre José [sic] Maria de Sousa ,
vigário da vara, muito se estranha que semelhante individuo tenha sido aceite
para colaborar no referido semanário, visto que de todo é conhecido os seus
escritos serem sempre de tendências anarquista”.
Outra iniciativa fruto
daquele debate foi a dinamização do “Pelouro Cultural da Física” por uma nova
comissão de coordenação, nomeada em 1969 e da qual faziam parte três dos mais
activos participantes naquele debate, António Augusto Sales, Ruy de Moura
Guedes e Venerando Ferreira de Matos (2).
Na edição de 24 de Maio o jornal “Badaladas”
anunciou que a Direcção da “Física” convidara para dirigir o Pelouro Cultural
daquela associação António Augusto Sales, o Dr. Ruy de Moura Guedes e Venerando
Ferreira de Matos, “que já tiveram a sua primeira reunião” e que apresentarão
brevemente o seu plano de trabalho que incluirá “palestras, recitais de poesia,
biblioteca, visitas gravadas e um festival de música “pop””.
Curiosa a referência ao
festival de “Música Pop”, tendo em conta que estávamos em 1969, meses antes do
famoso Festival de Woodstoock e, em Portugal, o Festival de Vilar de Mouros só
aconteceu em 1971.
Oficialmente, a nomeação
daquele triunvirato aconteceu em 3 de Julho de 1969, acto confirmado pela
direcção da “Associação de Educação Física”, então dirigida por António Leal d’
Assenção.
Esse pelouro tinha sido
criado pela direcção daquela Associação em 1967, designando para o primeiro mandato o Dr. João
Carlos da Cunha, director da Escola Secundária Municipal, o Dr. Quaresma de
Almeida, Director da Escola Industrial e Comercial, e o Dr. Alberto Vieira
Jerónimo, professor nesta última escola (3).
Com as nomeações para
aquele Pelouro de figuras conotadas com a oposição, a actividade deste organismo conheceu uma
profunda renovação na sua programação, tornando-se o que de mais importante se fez em termos
culturais em Torres Vedras antes do 25 de Abril, e desde os tempos do Cine
Clube.
Tomando posse perante os
corpos gerentes da “Física” naquela mesma data, realizou-se uma sessão de
trabalho que levou à apresentação do programa do renovado “Pelouro Cultural da
Física” que constou “em linhas gerais, de algumas conferências subordinadas a temas
de muito interesse que oportunamente serão anunciados, um sarau de poesia
moderna, uma exposição de artes plásticas e um debate público sobre assuntos de
interesse regional”, apresentando-se as bases teóricas do mesmo projecto nas
páginas do “Badaladas” na edição de 12 de Julho (4).
A primeira actividade
desse Pelouro foi uma conferência, no salão da Tuna Comercial Torreense, sobre a “Conquista da Lua” proferida por
Eurico da Fonseca e que contou com a colaboração do Engº Hélio Paulino Pereira,
com exibição de 3 filmes sobre o programa Apolo cedidos pela embaixada dos
Estados Unidos da América. A apresentação esteve a cargo de Ruy de Moura
Guedes.
Um ano passado e o balanço
do mandato dessa equipa era resumido nas páginas da revista “Flama”:
“De entre as realizações levadas a cabo pelo
Pelouro da Cultura desde a sua fundação podem ser destacadas as visitas do
arquitecto Paulino Pereira (que se pronunciou acerca da vida e obra de Gago
Coutinho), de Eurico da Fonseca (colóquio sobre a missão Apolo); um debate de
que a poesia foi tema central proporcionou a presença de Maria Teresa Horta e
de Armando da Silva Carvalho na vila estremenha; recentemente (…) um colóquio
sobre artes plásticas sob a direcção de Fernando Grade, Artur Bual e Arnaldo
Figueiredo, encerrou uma exposição de pintura e escultura de artistas torriense
que durante uma semana esteve patente ao público no salão principal da Tuna
Comercial de Torres Vedras” (5).
Numa reportagem da autoria
de Venerando Ferreira de Matos publicada no “Badaladas” de 3 de Janeiro de
1970, refere-se aquele colóquio sobre artes plásticas, que teve lugar em 27 de
Dezembro de 1969 no “salão da Tuna repleto”, como o que, em Torres Vedras teve
“a maior assistência até hoje registada em debates sobre cultura”. Nessa mesma
reportagem, lamentava-se, contudo, “a falta de muitas figuras locais com
responsabilidade na educação e cultura da juventude”, mas realçava “o facto de
essa mesma juventude estar presente, colorindo com a sua presença e a sua
intervenção um colóquio que ficará sem dúvida a marcar um momento único na
“apagada e vil tristeza” em que Torres Vedras, neste capítulo, tem vivido.
“Contactos desta natureza
deviam fazer-se com maior assiduidade com o apoio, não só do Pelouro Cultural
da Física, mas do das próprias entidades oficiais que julgamos interessadas
numa maior valorização da população local”.
Nessa mesma reportagem
anunciava-se a extinção do Pelouro Cultural da Física, prevista para Fevereiro
de 1970, “com os actuais elementos”, não se esperando a sua recondução “na
medida em que desse modo se estaria exercendo um “patriarcado cultural” (como
muito bem disse Augusto Sales), absolutamente contra indicado. Há que
intercalar outros nomes, outros responsáveis, outras mentalidades”, apelando
aos “jovens de Torres Vedras” que se oferecessem para colaborar no futuro
Pelouro Cultural.
(Àquela Iª Exposição
seguiu-se uma “IIª Exposição de Artes
Plásticas” organizada por aquele mesmo pelouro, inaugurada no Salão da Tuna
Comercial Torriense em 7 de Junho de 1970 pelo Presidente da Câmara de então e
que contou com uma palestra pelo escultor Lagoa Henriques.
Na exposição, para além de
trabalhos de Lagoa Henriques, foram expostos trabalhos de Carlos Amado, Nuno
Corte Real, José Pedro Sobreiro, João Magalhães Silva e Fernando Calhau) (6).
Uma das últimas
actividades promovidas por esse Pelouro , sob a direcção daquele triunvirato,
teve lugar em 28 de Fevereiro de 1970.
Foi um debate sobre o
Liceu Nacional de Torres Vedras, que mereceu amplo destaque nalguma imprensa
nacional, como foi o caso do “Diário de
Lisboa”, e que foi marcado pelas atitudes antidemocráticas do representante da
Câmara, e especialmente vigiada pela PIDE , como se depreende do seguinte
relatório daquela policia politica, datado de 18 de Março de 1970:
“Promovido pelo Pelouro
Cultural da Associação de Educação Física e desportiva de Torres Vedras,
realizou-se naquela vila no pretérito dia 28 de Fevereiro, no salão de Festas
da Tuna Comercial Torrense – cedido para o efeito – um “Mesa Redonda”, com
o fim –dizia-se – de debater problemas do Ensino Secundário daquela vila.
“Os trabalhos da reunião
em causa foram orientados pelo advogado sr. Dr. Rui de Moura Guedes, do
referido Pelouro, coadjuvado pelos nacionais Venerando Ferreira de Matos
e Luís Fernando de Andrade Santos “o Ferrer” (…).
“Consta que a assistência,
cerca de cem pessoas, era composta, na sua maioria, por estudantes, professores
e encarregados de educação, entre os quais se destacava o Vice-Presidente da
Câmara Municipal de Torres Vedras, Sr. Augusto Clímaco Pinto, pelo que
se presume que tal reunião estivesse autorizada.
“Mais consta que o
referido Vice-Presidente abandonou a sala, pouco depois do início dos
trabalhos, indignado pelos termos expostos pelo Andrade Santos (…).
“(…).
“Posto isto, consta que o
diálogo se manteve, entre os assistentes, por largo tempo, tendo sido debatidos
vário problemas subordinados ao tema, mormente relacionados com a falta de
instalações e com a situação dos professores da Escola Secundário, ora extinta
[para se tornar uma secção liceal].
“Contudo, segundo se
comenta, não se vê que aspecto cultural a referida sessão possa ter
demonstrado, perguntando-se; Associações do género das da Associação Física e
Desportiva de Torres Vedras, cujo “Pelouro Cultural” levou a efeito a dita
“Mesa Redonda”, possuem legitimidade para abordar, em discussão pública,
assuntos que, de todo ou todo, lhes estão postas à margem pelos seus fins
estatutários [?].
“Porém, em certa medida,
se encontra explicação para que se organizem tais “Mesas Redondas”, que não têm
outra finalidade senão pôr em cheque as Instituições Nacionais, porquanto os
homens que dirigem a aludida Associação Física são os nacionais: António
Leal da Assunção “o Leal da Sola”, presidente da Direcção, conhecido
elemento “pró-comunista” e responsável pela “Comissão Democrática Eleitoral”
(C.D.E.), nas últimas eleições para Deputados; Dr. Augusto Bastos Troni,
presidente da Assembleia Geral, sobejamente conhecido pelas suas ideias
contrárias ao Regime Vigente; Venerando Ferreira de Matos, membro do
falado “Pelouro Cultural” e bem conhecido pela sua tendência “pró-comunista”.
“(…).
“Portanto, comenta-se que
tal “Mesa Redonda” nada mais foi que uma primeira plataforma de escape,
conforme determinação do Movimento de Oposição Democrática (M.O.D.),
cuidadosamente encapotado, para se tentar instalar no seio estudantil local
mal-estar e a agitação que se vem verificando noutras localidades, servindo,
com efeito, o problema do Ensino Liceal em Torres Vedras um mero pretexto para
se tentar impor, num sector devidamente procurado pela subversão, o principio
da instabilidade e da insegurança (7).
Num momento em que a
Associação de Educação Física recorria a apoios estatais para iniciar a
construção da sua nova sede, a actual, e temendo pressões politicas, aquele
triunvirato decidiu, de livre vontade, apesar de apoiados pela direcção daquela colectividade, afastar-se da desse Pelouro.
Simbolicamente, o
afastamento daquele “triunvirato” do Pelouro Cultural da Física representou, em
termos locais, o fim do ambiente de aparente abertura proporcionado pela chmada
“Primavera Marcelista”.
(1) - “Para um Historial do “Badaladas” – o
Director dá uma entrevista a Andrade Santos”, in “Badaladas” de 19 de Maio de
1973;
(2) -
Para a história desse “Pelouro” ,leia-se
RODRIGUES, Cecília Travanca, “O Pelouro Cultural”, in SILVA, Carlos
Guardado da, e RODRIGUES, Cecília Travanca, História da Associação de Educação
Física e Desportiva de Torres Vedras, , ed. Torres Vedras 2012, pp.274 e 275;
(3) -
Ver “Cartas ao Director”, in “Badaladas”
de 4 de Maio de 1968;
(4) -
“Desafio –ou o “programa” do Pelouro Cultural da Física”, assinado por
Venerando de Matos, Ruy de Moura Guedes e António Augusto Sales., in
“Badaladas” de 12 de Julho de 1970;
(5) -
Almeida Martins, “Torres Vedras: Arte no meio das vinhas”, in FLAMA, nº 1140 de
9 de Janeiro de 1970, pp. 32 a 35;
(6) -
In “Badaladas” de 30 de Maio de 1971;
(7) – Torre do Tombo, Arquivo da PIDE/DGS, processo de
Venerando Ferreira de Mato, 255/45 SR, documento do Posto de Peniche da
D.G.S datado de 18 de Março de 1970.
1 comentário:
Mais um excelente contributo para o conhecimento do nosso passado recente.
Obrigado.
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