segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Agosto de 1931 - Uma Revolução que terminou em Torres Vedras


O ano de 1931 foi um ano decisivo para a consolidação da Ditadura Militar do 28 de Maio e para o fortalecimento de Salazar na liderança política do novo regime.

Foi também um ano marcado pela agitação política, registando a última grande revolta militar contra a Ditadura liderada pelos republicanos.

1931 ficou assim conhecido como o  “ano de todas as revoltas” (ver FARINHA, Luís, O Reviralho – Revoltas Republicanas contra a Ditadura e o Estado Novo – 1926-1940, Lisboa, ed. Estampa, 1998, em especial o capítulo “IV.1931 – O Ano de Todas as Revoltas”, pp. 127 a 208), com destaque para a “Revolta da Madeira”  (ver REIS, Célia , A Revolta da Madeira e Açores, Lisboa,  Livros Horizonte, 1990) iniciada em 4 de Abril e liderada por vários oposicionistas aí deportados, entre eles o General Sousa Dias, conseguindo ocupar e dominar a ilha durante alguns dias, seguida de vários pronunciamentos militares em várias ilhas do arquipélago dos Açores, entre 7 e 10 de Abril,  e na Guiné em 17 de Abril , falhando uma mesma tentativa em São Tomé em 12 de Abril.

O regime da ditadura militar enviou reforços militares para recuperarem as ilhas, começando por dominar a revolta açoriana entre 17 e 20 de Abril, e desembarcando depois na Madeira em 27 de Abril, conseguindo dominar os revoltosos, após confrontos violentos, em 2 de Maio, rendendo-se os insurrectos da Guiné em 6 de Maio.

Animados pelo impacto desses pronunciamentos da oposição, mas também pela proclamação da República em Espanha em 14 de Abril, a agitação política alargou-se ao continente, com a greve universitária iniciada em 25 de Abril, como protesto pela morte de um estudante, e com a crescente agitação nas ruas de Lisboa e Porto a partir do  1º de Maio, prolongando-se até ao fim do mês, , com confrontos violentos entre os manifestantes, maioritariamente comunistas e anarco-sindicalistas,  e a GNR.

Em 26 de Agosto estalou nova revolta militar, desta vez no Continente, mas que acabou por falhar, em parte pela divisão dos republicanos, entre os exilados na Galiza e os “Budas” de Paris, para além de alguma hesitação dos republicanos do continente, ainda abalados pelo fracasso da revolta da Madeira e anestesiados pela promessa de poderem concorrer a eleições municipais prometidas para finais desse ano.

A revolta iniciou-se pelas 7 da manhã dessa 4ª feira com a ocupação, por parte de grupos de civis e militares, dos quartéis de Metralhadoras nº 1, de Artilharia nº 3 e da Penitenciária, em Lisboa, e os quartéis de sapadores mineiros de Queluz e da Pontinha . A partir desses quartéis saíram vários militares, acompanhados de civis, para tomar posição em vários lugares da capital. A reacção das forças fiéis ao governo permitiu dominar a revolta em Lisboa a partir do final da manhã, acções que se prolongaram pela tarde desse dia. Cercados por tropas fiéis ao governo, aqueles quartéis acabariam por se render ao fim de algumas horas de sangrenta resistência.

Por outro lado, coube ao tenente coronel da aviação Sarmento de Beires, na clandestinidade desde 1928, ocupar e assumir o comando do campo de aviação de Alverca, tendo os militares revoltosos ocupado a estação local de caminho de ferro, revistando todos os comboios que por aí passavam a caminho de Lisboa.

Desse campo de aviação partiram dois aviões que bombardearam as peças de artilharia de Almada, fiéis ao governo, e o Castelo de S. Jorge, onde estavam outras forças governamentais. A falta de pontaria desses bombardeamentos causaria muitas mortes entre os civis, principalmente em Almada e no bairro lisboeta de Alfama.

Devido à ofensiva das tropas governamentais, que bombardearam aquelas instalações de Alverca com uma peça de artilharia de Sacavém, Sarmento de Beires e os revoltosos sob o seu comando retiraram-se a caminho de Lisboa no início da tarde, mas tomando conhecimento de que a revolta já tinha sido dominada em Lisboa, dirigiram-se por Bucelas para Loures, onde chegaram por volta das 11 e 30 da manhã, sendo recebidos pelos seus apoiantes locais, demitindo a câmara e requisitando mantimentos.

Apanhada de surpresa, a população de Loures “sofreu momento de verdadeiro pânico, ao contemplar as manobras militares. Imediatamente foram estabelecidas vedetas em todos os pontos da vila, ao mesmo tempo que era tomada a estação telégrafo-postal, a Associação de Bombeiros Voluntários e a Câmara Municipal e cortadas, exteriormente, as linhas da estação telefónica”. Sarmento de Beires tomou os Paços do Concelho, dando ordem de prisão ao administrador do concelho e a vários funcionários municipais, içando a bandeira nacional na fachada do edifício, onde se reuniram vários populares “trocando-se nesse momento muitos “vivas” á Pátria e á República de mistura com morras á Ditadura”.

Muitos habitantes da vila, pelo contrário, fugiram para lugares vizinhos, temendo um confronto violento entre revoltoso e forças fiéis à ditadura (“O Século”, 28 de Agosto de 1931).

Perante a aproximação de forças da  infantaria e de cavalaria da GNR, fiéis ao governo, os revoltosos retiraram-se daquela localidade por volta das 2 da manhã do dia 27, a caminho de Torres Vedras, com o objectivo de rumarem a Caldas da Rainha.

Acompanhavam Sarmento de Beires cerca de 200 homens (outras fontes jornalísticas falam, ora em 150, ora em 250), transportados em cinco camionetas. (“Novidades” de 28 de Agosto de 1931).

Na madrugada do dia 27 de Agosto, uma 5ª feira, pelas 5 horas da madrugada, deu entrada na vila de Torres Vedras a coluna militar comandada pelo tenente-coronel Sarmento de Beires, que se posicionou com sentinelas nas principais entradas da vila, impedindo a entrada e saída de pessoas e veículos.

Segundo alguns relatos, aquelas tropas eram acompanhadas por civis armados, “estranhos a esta vila” de Torres Vedras (DN, 30 de Agosto de 1931).

Sabe-se, contudo, que os revoltosos contavam com apoio local (para um melhor enquadramento da situação política torriense nesse período leia-se RAMOS, Hélder Ribeiro , A Consolidação do Estado Novo em Torres Vedras – Poder e Oposição – 1926-1949, Ed. Colibri/CMTV, 2019). Num relatório da PVDE sobre a situação política em Torres Vedras, onde se registam aos acontecimento vividos nesta localidade, refere-se que a coluna de Sarmento de Beires “tomou rumo a Torres Vedras devido” ao compromisso de “levantamento revolucionário” nesta localidade e em Caldas da Rainha, assumidos, respectivamente, por Victor Cesário da Fonseca, “Negociante e director do jornal “Gazeta de Torres” e “elemento mais perigoso de Torres Vedras”, e por Maldonado de Freitas, encontrando-se este último na casa de Victor Cesário da Fonseca, em Torres Vedras, quando da chegada da coluna revoltosa a esta localidade.

Sarmento de Beires teria ainda contado com o apoio local de João Caldeira, professor primário, “braço direito do VICTOR CESARIO DA FONSECA” e Galileu da Silva, caixeiro-viajante na linha do Oeste, elemento de ligação com Lisboa e concelhos vizinhos. O mesmo relatório acusa, estranhamente quanto a nós, o Dr. Moura Guedes de ser elemento de ligação com vários “reviralhistas de Oeste”. Contaria ainda com o apoio de outros notáveis civis republicanos nos concelhos vizinhos da Lourinhã e do Bombarral (ANTT/PVDE, Proc. Nº 1483/SR- Sarmento de Beires).

A “coberto de um denso nevoeiro” (O Século, 28 de Agosto de 1931) começaram por tomar o quartel da GNR e a estação de correios e telégrafos.

Sarmento de Beires, “que apesar de ir fardado de tenente-coronel, levava sobre aos ombros uma capa alentejana” (O Século, 28 de Agosto 1931) notificou o comandante do posto da GNR, o então 2º sargento José da Silva Anacleto “que ficava daquele momento em diante sob o seu comando, assim como todo o posto”.

Segundo a versão do Diário de Notícias os rebelde prenderam os 14 soldados da GNR desse posto, que, à sua chegada dormiam na caserna, bem como o referido sargento que estava no seu quarto. “Os prisioneiros quiseram reagir, mas, perante a força numericamente superior, tiveram de desistir do seu intento” (Diário de Notícias, 28 de Agosto de 1931).

A estação “telegrafo-postal” foi ocupada, sem resistência por volta das 6 da manhã, “tendo a telefonista de serviço, Maria de Lourdes Albino, chamado o chefe, sr. Evaristo Silva, o qual, perante a força, foi obrigado a submerter-se” (“O Século”, 29 de Agosto de 1931).

De seguida mandou homens seus ao Hotel Central, situado na Avenida 5 de Outubro, para ordenar ao administrador do concelho, o tenente França Borges, que aí estava hospedado, para se apresentar naquele posto. (“A Revolução – Torres Vedras, assiste na passada quarta feira, ao desfazer da ultima coluna revolucionária, do comando de Sarmento de Beires”, in Jornal de Torres Vedras de 30 de Agosto de 1931, pág.3).


Segundo o relato do jornalista d’”O Século” (28 de Agosto 1931) coube ao sargento-ajudante Machado a responsabilidade de ir buscar o tenente França Borges, eram 10 horas da manhã. Este, contudo, conseguiu fugir, usando como estratagema, quando acompanhava os seus captores, a desculpa de se ter esquecido da sua carteira e relógio no hotel. “Ante a sinceridade das palavras do sr. tenente França Borges, o sargento ajudante Machado autorizou-o a ir sozinho, em procura de aqueles objectos, aproveitando o referido tenente a oportunidade para se pôr a salvo”.

França Borges aproveitou a fuga para se dirigir à estação de caminho-de-ferro “de onde conseguiu telegrafar para Lisboa e Caldas da Rainha, a prevenir do que se passava. Em seguida, afastou-se da vila até a saída dos revoltosos. Foi a sua comunicação telegráfica que serviu de aviso ao regimento de Infantaria 5, que desconhecia, por completo, o que se passava” (O Século, 29 de Agosto de 1931).

Segundo a reportagem do Diário de Notícias (28 de Agosto de 1931) a “população da vila, que só dera pela tropa rebelde quando começava os seus afazeres quotidianos, ficou surpreendida e alarmada com aquele aspecto bélico, tanto mais que nunca tinha presenciado ali qualquer revolta. A calma na população foi-se refazendo por não se ter disparado um único tiro”.

Eram já perto da 8 da noite (?), quando Sarmento de Beire, após conferenciar com um civil,  soube do fracasso da revolução, percebendo que estava isolado.

Por volta das 9 da noite (?) “reuniu os sargentos e comunicou-lhes a derrota, ordenando-lhes que se fossem entregar com os soldados à sua unidade, em Alverca, mas ocultando-lhes a situação. E em camiões lá foram a caminho.

“Libertos os soldados e o sargento do posto da G.N.R., este último imediatamente conseguiu comunicar com Caladas da Rainha, dando conta do sucedido.

“Algum tempo depois voavam sobre Torres Vedras e arredores dois aeroplanos da aviação militar, afim de fazerem observação” (DN, 28/8/1931).

O horário indicado pelo repórter do Diário de Notícia não corresponde com o referido no jornal torriense “Gazeta de Torres” de 30 de Agosto, que coloca o abandono de Sarmento de Beires de Torres Vedras pelas 10 horas da manhã desse dia, e não à noite, parecendo-nos aliás mais credível esta versão.

Seja qual tenha sido o momento, assim que se decidiu retirar da vila, Sarmento de Beires, acompanhado por um oficial, tomou um automóvel a caminho da Aldeia Grande (DN 30/8/ 1931).

Entretanto, acompanhado pelo sargento Anacleto, da GNR, foi a vez de França Borges partir de automóvel em perseguição de Sarmento de Beires (“O Século”, 28 de Agosto 1931).

Existe uma história curiosa, de tradição oral,  passada entre a fuga de França Borges, acima descrita,  e a fuga posterior  de Sarmento de Beires.

Depois de ter avisado o Regimento de Infantaria 5 de Caldas da Rainha e o Governador Civil de Lisboa, através do telegrafo do caminho de ferro, do que se passava em Torres Vedras, após ter escapado à voz de prisão, França Borges foi ajudado por um adversário político, mas que era seu amigo, António Vicente dos Santos, conhecido por “Mafalda”, e levado para o Ramalhal, escondendo-se na casa de José Antunes Martins, o “José Marujo”.

Entretanto, depois de abandonar a vila, num carro de praça, Sarmento de Beires teve a colaboração do mesmo “Mafalda”, que o levou também para o Ramalhal, para a casa do mesmo “José Marujo”.

Assim, durante alguns momentos ou horas, os dois adversários estiveram escondidos na mesma casa, em salas diferentes, sem saberem um do outro ( a história foi contada ao sr. Adão de Carvalho por Maria do Carmo C. da Silva, filha do José Marujo e referidos pelo mesmo Adão de Carvalho, numa crónica da sua autoria publicada no jornal “Badaladas” em 29 de Abril de 1994, “Recordando…Uma “revolução” que morreu em Torres Vedras).

Ao contrário do que se disse na altura, os revoltosos nunca ocuparam o edifício municipal, nem prenderam o Presidente da Câmara, nem, muito menos, se apoderaram do dinheiro do cofre do município, mentiras lançadas pelo “situacionista” jornal “A Voz” na sua edição de  28 de Agosto.

Coube ao próprio França Borges, em reunião da comissão administrativa da Câmara Municipal, realizada no dia 28, desmentir essa calúnia. (O Século 29 de Agosto 1931), o mesmo fazendo, de forma indignada, o jornal torriense “Gazeta de Torres” na sua edição de 30 de Agosto.

Sarmento de Beires foi avistado na noite do dia 27 em Óbidos, na companhia de um outro oficial, onde jantou numa pensão, deslocando-se depois para a zona de Leiria (“O Século” de 29 de Agosto de 1931 e “Novidades”, 30 de Agosto de 1931).

Segundo o acima mencionado relatório da PVDE, Sarmento de Beires ter-se-á refugiado na casa do engenheiro agrónomo Adolfo Bordalo na Lourinhã, para onde foi conduzido por Victor Cesário da Fonseca, tendo este subsidiado o líder revolucionário em fuga durante alguns meses “com mil escudos por mês”, tal como o fizeram um tal Vilhena da Quinta do Calvel, o referido engenheiro Adolfo Bordalo da Lourinhã e o já referido Maldonado de Freitas de Caldas da Rainha.


Sarmento de Beires conseguiu manter-se na clandestinidade durante mais dois anos, sendo localizado em Espanha. Só seria preso em 21 de Novembro de 1933 e deportado para Angra do Heroísmo. Após várias peripécias, transferências para as colónias e fugas, ainda participou na Guerra Civil espanhola ao lado das forças republicanas. Mais tarde passou pelo Brasil e por França, residindo em Paris em 1940, regressando ao Brasil após a ocupação da França pelos nazis. Em 1951 conciliou-se com o regime, regressando a Portugal, sendo reintegrado no posto de major . Faleceu poucos dias depois do 25 de Abril, em 9 de Junho de 1974.(Processo de Sarmento de Beires no arquivo da PIDE do ANTT e FARINHA, Luís, “Beires, José Manuel Sarmento de” Dicionário de História de Potugal, vol 7-suplemento, ed. Figueirinhas. 1999, pág.178).

A derrota do movimento revolucionário de 26 de Agosto de 1931 terminou com a esperança de uma transição da ditadura para um novo regresso à “normalidade” republicana e contribui para a consolidação dos sectores mais radicais da ditadura militar.

Foram efectuadas centenas de prisões entre oposicionistas, aceleraram-se os saneamentos políticos no exército e na função pública, envolvendo mesmo muita gente que nada teve a haver com aquela revolta, reorganizou-se a censura e a polícia política, consolidou-se a recém criada União Nacional e iniciaram-se os trabalhos para a promulgação da Constituição de 1933 que criou o Estado Novo, que seguiu de perto o modelo institucional do fascismo italiano.

Pouco menos de um ano após aqueles acontecimentos, o até então todo poderoso Ministro das Finanças e  líder da facção mais radical dos anteriores governos da ditadura militar, António de Oliveira Salazar, tornou-se Presidente do Conselho de Ministros, cargo do qual tomou posse em 5 de Julho de 1932, só o abandonando por doença súbita em 1968.

 

                                                                                                                                      

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