quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Data de 1729 a mais antiga “Monografia” sobre Torres Vedras


Talvez seja um pouco exagerado falar de “monografia” para referir um manuscrito que sistematiza várias informações sobre a História e o Património de Torres Vedras.

Mas existe nesse documento uma primeira tentativa de organizar um conjunto de informações históricas sobre o concelho, atitude que é pioneira em relação à História local deste concelho.

Referimo-nos ao manuscrito intitulado “Livro de Notícias Varias, composta por hum vario autor. Anno de 1729”, que esteve, primeiro, depositado na Biblioteca Municipal de Torres Vedras, e se encontra actualmente à guarda do Arquivo Municipal.

Quando consultámos pela primeira vez esse manuscrito, em 1988, encontrava-se junto um pequeno papel em anexo onde se indicava que esse “manuscrito foi feito pelo capitão Luiz Botto Pimentel Corte real e pertencia ao sr. Augusto Botto Pimentel, morador na casa da Ribeira, na Bulegueira, que em 1926 o mostrou a Júlio Vieira”.

Esta anotação, datada de 26 de Maio de 1976, era assinada pelo conhecido arqueólogo torriense, sr. Leonel Trindade.

Pouco se sabe sobre a vida do capitão Boto Pimentel. Terá vivido entre 1684 e 1741, a fazer fé na placa toponímica que se encontra na rua baptizada com o seu nome, e pertencia a uma das mais antigas famílias do concelho, ainda hoje existente.

Júlio Vieira afirmou que a família dos Bôtos “em 1729 era representada pelo capitão Luiz Bôto Pimentel Côrte Real, autor do manuscrito a que faço referência (…) e que naquela época era “vereador mais velho”.

Voltando ao manuscrito em causa, ele foi pela primeira vez mencionado com data e autoria correcta pelo citado Julio Vieira, na sua “Torres Vedras Antiga e Moderna”, obra editada em 1926.

Contudo, na 2ª edição da obra de Madeira Torres, “Descripção Historica e económica da villa e termo de Torres-Vedras”, publicada em 1862, os seus editores e anotadores, Dr. José António da Gama Leal e bacharel José Eduardo Cezar de faro e Vasconcelos, referem-se amiudadas vezes a uma “memória” de 1734 que nos parece ser o mesmo documento a que nos estamos a referir.

Comparando as informações por eles atribuídas à tal memória de 1734 com as informações do “Livro de Notícias Várias” de 1729, elas são , na grande generalidade, coincidentes.

Isto leva-nos a colocar duas hipóteses:

- ou aqueles editores copiaram mal os dois últimos algarismos do rosto do manuscrito, o que é perfeitamente possível, pois a forma como os números 2 e 9 estão grafados podem ser confundidos com os números 3 e 4;

- ou o manuscrito de 1729 foi uma primeira versão, uma espécie de “caderno de apontamentos”,  que serviu de base para uma outra versão, passada a limpo, com a data de 1734.

Esta última hipótese também é credível já que, em 1734, o capitão Boto Pimentel ainda estava vivo.

Porém, até hoje, nunca foi encontrada qualquer versão datada de 1734.

É igualmente importante analisar o “Livro de Notícias Várias (…)” no contexto da historiografia característica da época.

(excerto de uma passagem do documento)


Oliveira Marques, no volume primeiro da sua “Antologia da Historiografia Portuguesa”, editada em 1974 pelas Publicações D. Quixote, considera que, sendo a historiografia portuguesa de setecentos dominada por uma “ideologia clerical”, consequência do predomínio eclesiástico na historiografia da época, marcada pela profusão de “histórias monásticas (…) tradutoras de uma lamentável ausência de espírito crítico e de uma assombrosa guarida à lenda e à patranha”, já se registavam então alguns progressos na “maneira de redigir a história”, marcada pela influência humanista, concedendo o “documento como fonte primeira da história”.

Esta influência provoca, na época, apesar do domínio da tal “história clerical”, um “surto  de novos métodos críticos e comparativos com os primeiros passos das ciências auxiliares –a diplomática, a paleografia, a filologia, a arqueologia, a cronologia, etc”, atitude que se reflecte na historiografia portuguesa.

Apesara deste avanço, Oliveira Marques alerta para o facto de “que o recurso a essas “ciência auxiliares”, pelo estado mais que infantil em que se encontravam ainda, escondia perigos imensos, quais os de extrair conclusões e fomentar hipóteses a partir de dados que de verídico nada tinham”.

De facto, o documento por nós aqui recordado, revela algumas das novidades que começam a surgir em setecentos, pois o texto do capitão Boto Pimentel recorre a várias fontes, citando a sua origem (obras impressas, manuscritos existentes nos arquivos da Câmara, pedras tumulares, etc.), mas também comete alguns erros.

Quanto ao estilo, o “Notícias Várias (…)” parece estar mais de acordo com a caracterização feita por Oliveira Marques para as narrativas ao estilo medieval que ainda eram dominantes na época: o documento em causa apresenta uma “ordenação e abundância desconexa de factos”, residindo aqui um dos maiores defeitos do manuscrito.

O Manuscrito é um único caderno que se pode dividir em 3 partes distintas. Numa primeira parte intitulada “Reys de Portugal”, descreve-se, resumidamente, a vida dos nossos monarcas, desde Afonso Henriques até D. João V, com pouco interesse. Numa segunda parte, que é aquela que nos interessa, reúnem-se, de forma desordenada, várias informações sobre Torres Vedras, sendo a partir desta parte que o autor começou a numerar as páginas do caderno.

Finalmente, temos uma terceira parte de apontamentos dispersos, uma descrição da evolução e valor das moedas portuguesas, onde aparecem dados dispersos sobre História Universal e de Portugal, sem nada de relevante. Contudo, no meio dessas notas dispersas, semeadas no conteúdo genérico desta terceira parte, encontram-se mais algumas informações sobre Torres Vedras.

Um dos aspectos a valorizar neste conjunto da apontamentos sobre Torres Vedras é o facto de eles terem sido escritos antes do incêndio do cartório da câmara, em 1745, e do efeito devastador do terramoto de 1755, pelo que, neste ensaio de monografia, se encontram transcritos, em primeira mão, documentos desaparecidos na voragem dos referido e trágicos acontecimentos, como é o caso, por exemplo, de uma carta de D. Afonso IV, integralmente citado neste documento, sobre a doação de uma vinha.

Há ainda a tentativa de reproduzir graficamente símbolos e letras de sepulturas, lápides e brasões, alguns já desaparecidos.

Seria interessante editar e tornar acessível ao público torriense este documento, anotado criticamente, mais por curiosidade do que pela novidade, pois, o que de mais importante nele se encontra, já foi usado por Júlio Vieira e pelos anotadores da 2ª edição da monografia de Madeira Torres  nas obras já citadas.

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