terça-feira, 15 de outubro de 2024

Os primeiros “torrienses”

(Trindade e Paço, 1964)

Foi há 60 anos que Leonel Trindade e Afonso do Paço elaboraram a primeira síntese sobre o que então se sabia àcerca dos primeiros habitantes da região deste concelho. Trata-se da publicação, na revista Arquivo de Beja, do estudo intitulado “Subsídios para uma carta arqueológica do concelho de Torres Vedras – I – Algumas estações paleolíticas”, publicado como separata em 1964 com a data de Abril desse ano.

Fazendo um breve historial sobre os primeiros trabalhos arqueológicos onde se fizeram descobertas sobre a ocupação paleolítica nesta região, em especial junto ao litoral de Santa Cruz, trabalhos esses iniciados em 1934, os autores fazem o levantamento desses primeiros achados, acompanhados por ilustrações da autoria de Maria João Lopes do Paço e por um mapa com a sua localização neste concelho (mapa que ilustra este artigo).

Os primeiros objectos desse período, cerca de um milhar, foram recolhidos na costa de Santa Cruz, na Ponta da Vigía, a norte de Santa Cruz, no chamado lugar de “A Mina”, a este daquela localidade e perto do “Porto Escada”, a sul.

A maior parte desses materiais líticos datavam, uns do paleolítico inferior, em pequeno número, e a maior parte do paleolítico superior.

Anos depois, Leonel Trindade descobriu outras estações arqueológicas e vestígios do Paleolítico Superior, “uma na zona de Cambelas e outra no Rossio do Cabo”, esta situada na freguesia de A-Dos-Cunhados, e numa estação “a W. do Casalinho”.

Do mesmo período existiam à época, no Museu Municipal, alguns utensílios desse período, um biface recolhido por outro importante arqueólogo local, Aurélio Ricardo Belo, no “Vale de Carros”, no Maxial, outro recolhido por Leonel Trindade junto ao cemitério da então vila de Torres Vedras.

Na freguesia da Silveira tinham também sido recolhidos vestígios líticos desse período no Casal da Portela e no Casal das Pedrosas.

A partir de então o conhecimento sobre esse período, o mais antigo com ocupação humana na região, conheceu um grande desenvolvimento, com novas descobertas e publicações que actualizaram o esse conhecimento, com destaque para a nova síntese sobre a pré-história torriense da autoria de Cecília Travanca (ver bibliografia) e para a monumental obra de João Zilhão em dois volumes, O Paleolítico Superior da Estremadura Portuguesa, de 1997.

Com base nessas obras e noutras indicadas na bibliografia publicada em baixo, é possível fazer um breve levantamento sobre as estações paleolíticas e o tipo de vestígios recolhidos que documentam a primeira ocupação humana deste território.

Chama-se contudo a atenção que este é um tema sempre em evolução, não só em relação a novas descobertas, como em relação à datação para cada período, pelo que alguns dados referidos podem já estardesactualizados:

1 – Paleolítico Inferior ( 3 milhões de anos a 300 000 aC) (Na região europeia a ocupação humana só aconteceu há cerca de 800 mil anos atrás).

1– 1 –  Acheulense (400 000 a 300 000 aC) – Bifaces como vestígios mais frequentes, usados pelo Atlantropo

1– 1 – 1 – Pré – Acheulense:  Santa Cruz ( Corresponde a três sítios ao longo do litoral desse sítio .Ponta da Vigia, a norte, “a Mina”, a Este e perto do “Porto da Escada”, a Sul); perto da fonte da Água do seixo, Santa Cruz; e Seixosa (?).

1– 1 – 2 – Acheulense Médio: Casal das Pedrosas, Silveira; Casal da Portela, Silveira; Torres Vedras, área do mercado municipal; Vale de Carros, Maxial

1 – 1 – 3 – Acheulense Superior:  Seixo, Santa Cruz.

1 – 1 – 4 – Outros sítios com vestígios do Paleolítico Inferior: Ponte do Rol; Galegueira, Ponte do Rol; A-Dos-Cunhados; Carrascais, A-Dos-Cunhados; Sobreiro Curvo, A-Dos-Cunhados; Gruta de  Lapa da Rainha, Maceira.

2 –Paleolítico Médio (300 000 a 35 000 aC, última glaciação (Wurm), ocupação Neanderthal):

Penafirme, A -Dos- Cunhados;  Casal do Soito, Ponte do Rol; Casal do Calvo, Ponto do Rol.

3 - Paleolítico Superior (35 000 aC – 10 000 aC) – Homo Sapiens Sapiens.

3 – 1 – Aurinhacense (28 000 aC  – 26 000 aC) (Cro-Magnon) (Primeiras manifestações de arte figurativa: figuras de animais muito esquemática e signos gravados em blocos de calcário):Santa Cruz; achado isolado, em lugar desconhecido.

3 – 2 – Gravettense e Proto-Solutrense ( 26 000 aC – 21 000 aC).Período caracterizada pela indústria do buril de truncatura retocada. Na arte caracteriza-se pelas estatuetas  femininas em marfim (“Vénus”)

São deste período, neste concelho, espólio constituído por artefactos líticos, encontrados em Cova da Moura (Cambelas, S. Pedro da Cadeira) e em sítio ao ar livre localizado no Vale da Fonte ou Vale de Almoinha, a 500 metros da mina de água que lhe deu aquela designação.

 3 – 3 -  Solutrense (21 000 aC – 16 000 aC).Período caracterizado pela grande perfeição na técnica de talhe. A “folha-de-loureiro” e a raspadeira são dois dos instrumentos típicos deste período:

- Vale Almoinha, Cambelas, S. Pedro da Cadeira. A causa provável da escolha deste lugar como acampamento pré-histórico pode dever-se à existência, a 100 metros do lugar de uma nascente de água doce, já existente na época. A maioria do material lítico é constituído por peças em sílex (95% do total), algumas em quartzo, nomeadamente raspadeiras, “folhas de loureiro”, lascas, lamelas, lâminas, núcleos.

– Lapa da Rainha, Maceira. Gruta de abrigo esporádico, tendo servido fundamentalmente de toca de carnívoros. Para além de vestígios ósseos humanos fossilizados, foram encontrados ossos de animais já extintos na região, como o rinoceronte e a hiena.

3 – 4 – Magdalenense (16 000 aC – 10 000 aC). Caracteriza-se pelo importante desenvolvimento da indústria óssea e pela qualidade das obras de arte mobiliária ou parietal. Transição entre Paleolítico  e o Mesolítico:

- Baio ou Cerrado Novo ou W. do Casalinho, junto à foz do rio Sizandro, margem esquerda , Gentias do Meio, S. Pedro da Cadeira. Produção de lascas e lamelas. Data provavelmente de entre cerca 11000 e de 10500 aC. Os seus vestígios  prolongam-se pelo Neolítico;

-  Vale da Mata, na margem esquerda do rio Sizandro,Gentias, S. Pedro da Cadeira;

- Rossio do Cabo, Santa Cruz, no sítio onde se construiu o campo de tiro, 3 km. a NE. da praia de S.tª Cruz. Parece “ ter sido um acampamento de superfície, de pequena extensão, ocupado por caçadores durante um período de tempo relativamente curto” (RODRIGUES, 1999, p.60).

Esta estação arqueológica foi descoberta por Leonel Trindade em 1950.“A estação do Rossio do Cabo é um contributo importante para a arqueologia portuguesa: confirmando a influência europeia no ocidente da Península em pleno Paleolítico Superior, dá-nos elementos para verificarmos o estabelecimento no litoral estremenho de tribos aurinhacenses. Estas viveram, por certo em espaço de tempo reduzido, num acampamento ao ar livre, trabalhando com segurança material que iam buscar (...) a localidades distantes”, como Runa, Torres Vedras e, talvez, Rio Maior, Nazaré e Lisboa. (FREITAS, 1959, p.62).

– Pinhal da Fonte, Cambelas, S. Pedro da Cadeira.

3 – 5 – Outros lugares com vestígios do paleolítico superior: a SE de Casalinhos de Alfaiates; Escaravelheira (Vestígios líticos, do paleolítico superior final ou Epipaleolítico); Porto Escada, a sul de Santa Cruz; lugar da Mina Santa Cruz; Vale do Pizão, Santa Cruz; Vale do Cortiço, Santa Cruz; Ponta da Vigia, Santa Cruz; Póvoa de Penafirme; Varatojo; Fonte Grada;  Ponte do Rol; Casal do Calvo, Ponte do Rol.

Achados de superfície: Galegueira, Ponte do Rol; Casal da Portela, no vale do Sizandro; Vale do Covo, A-Dos-Cunhados; Cabeça Ruiva; Curral Velho, S. Pedro da Cadeira; Concheiro do Pinhal da Fonte, S. Pedro da Cadeira.

Em termos gerais, num período marcado pelo nomadismo dos grupos humanos, e tendo em conta as condições climatéricas, geográficas e naturais, muito diferentes das actuais, a maior parte dos vestígios desse período, encontrados neste concelho, concentram-se no litoral e ao longo do vale do Sizandro, que teriam também características diferentes das actuais geográficas (em relação à linha de costa, nível do mar e ao leito dos rios).

Não queremos terminar sem destacar o trabalho esforçado realizado aos longo dos anos pela equipa de arqueólogos torrienses ligados ao Museu Municipal Leonel Trindade.

 

BIBLIOGRAFIA:

CARVALHO, Emmanuel e outros, “More Data for na archeological map os the county of Torres Vedras” (paleolítico), in Arqueologia, nº 19, Junho de 1989, Porto 1989, pp. 16 a 33.

FREITAS, Cândido Manuel Varela de , A Arqueologia do Concelho de Torres Vedras (Contribuição para o seu estudo até à época Lusitano-Romana), Dissertação de licenciatura no Curso de Ciências Históricas e Filosóficas, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa,  2 volumes, Lisboa 1959,

“Freguesias”, suplemento do jornal BADALADAS, de T. Vedras, 1998, 1999 e 2000.

LEEUWAARDEN, Wim Van e QUEIRÓZ, Paula Fernanda, “Estudo de Arqueobotânica no sítio da Ponta da Vigia (Torres Vedras)”, in Revista Portuguesa de Arqueologia, Vol.6, nº1, 2003, pp. 79 a 81;

LOURENÇO, Sandra, e ZAMBUJO, Gertrudes, “Duas novas datações absolutas para a Ponta da Vigia (Torres Vedras)”, Revista Portuguesa de Arqueologia, Volume 6, nº 1, 2003, pp. 69-78;

LUNA, Isabel de, “Investigação arqueológica em Runa”, in “Freguesias” (Runa), suplemento nº 13 do jornal Badaladas, 15-10-1999.

PAÇO, Afonso do e TRINDADE, Leonel, Subsídios para uma carta arqueológica do concelho de Torres Vedras, separata do “Arquivo de Beja”, vol.XX-XXI, 1963-1964, ed. Minerva Comercial, Beja, 1964.

ROCHE, J. e TRINDADE, L., La Station Prehistorique de Rossio do Cabo (Santa Cruz – Estremadura), Porto 1951, separata do Boletim da Sociedade de Geológica de Portugal, Vol. IX (pg. 219-228), 1951;

RODRIGUES, Cecília Travanca, “O Passado Longínquo: da Pré-História à Romanização”, in Torres Vedras – Passado e Presente, vol I, pp. 35 a 60, C.M.T.V., 1996.

RODRIGUES, Cecília Travanca, Reconhecer Leonel Trindade, Cooperativa de Comunicação e Cultura, T. Vedras, 1999 (publica uma vasta bibliografia sobre a arqueologia torriense, com autoria ou coautoria de Leonel Trindade).

VIANA, A. E ZBYSZEWSKI, G., Gruta da Maceira (Vimeiro), Porto 1949, Instituto para a Alta Cultura-Centro de Estudos de Etnologia Peninsular, Porto, separata do fascículo 1-2, vol XII de Trabalhos de Antropologia e Etnologia;

ZILHÃO, João, O Paleolítico Superior da Estremadura Portuguesa, 2 vol., ed. Colibri, Lisboa 1997.

ZILHÃO, João, O Solutrense da Estremadura Portuguesa – uma proposta de interpretação paleoantropológica, IPPC, Lisboa 1987.

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