terça-feira, 20 de outubro de 2009

Nos Duzentos Anos do "Memorando Fletcher" (20 de Outubro de 1809)


Em Outubro de 1809, estando o exército anglo-luso acantonado nas margens do Guadina, Wellington deslocou-se a Lisboa e, na companhia do coronel Murray e do tenente-coronel Fletcher, percorreu durante alguns dias os terrenos a norte de Lisboa (1), deixando instruções para este último, num documento datado de 20 de Outubro de 1809, documento que ficou conhecido pelo “Memorando Fletcher”.

Do seu conteúdo constava o seguinte:

“O grande objectivo em Portugal é a posse de Lisboa e do rio Tejo e todas as medidas terão de ser dirigidas com este objecto em vista. Existe um outro, ligado igualmente com este primeiro objectivo para o qual devemos também prestar atenção, e que é o embarque das tropas britânicas em caso de revés.
“Qualquer que seja a época do ano em que o inimigo possa entrar em Portugal ele fará o seu ataque provavelmente por duas linhas distintas, uma a norte do Tejo e outra a sul; e o sistema de defesa adoptado terá que levar em conta este facto.
“(...) O objectivo dos aliados deverá ser o de obrigar o inimigo, tanto quanto possível a realizar o seu ataque com o corpo do exército concentrado: Eles deverão ficar em todas as posições que o terreno possa permitir, o tempo necessário para permitir que a população rural local evacue as vilas e aldeias levando consigo ou destruindo todos os meios de subsistencia e meios de transporte que não forem necessários aos exércitos aliados; cada corpo do exército deve ter o cuidado de manter as suas comunicações com os outros e a sua distância relativa do lugar de junção”(2).

As intenções de Wellington, com essa recomendação, foram resumidas por Teixeira Botelho, na obra citada, como a necessidade de “escolher uma posição suficientemente ampla para abrigar todas as tropas, quer da primeira, quer da segunda linha, das duas nações, que lhes permitisse ocupar uma situação vantajosa para cobrir Lisboa, séde dos recursos do país, e que não pudesse ser torneada nos seus flancos pelo inimigo, devendo ter uma comunicação segura com o mar, para permitir o embarque das tropas inglesas no caso de revezes sucessivos as obrigarem a êsse extremo”.
Tomada a decisão, Wellington enviou uma carta para o Rio de Janeiro, dirigida ao príncipe regente onde considerava que “o unico corpo organisado, que na peninsula podia manter o campo contra o inimigo commum, era o exercito alliado do seu commando e que sendo por outro lado indispensavel manter a comunicação com o referido principe e com a Gran-Bretanha, tomou por ponto capital do seu plano a conservação da cidade de Lisboa e a do Tejo, cuja posse tão importante era igualmente para o inimigo”. Considerava ainda “que o plano mais seguro, no meio das circumstancias em que se achava, era o da guerra defensiva, que com tanta rasão a prudencia lhe aconselhava como cousa mais salutar por então. Taes foram pois as causas que com tanto acerto o levaram a escolher uma posição em que se podesse com toda a segurança manter. Esta posição não podia deixar de ser effectivamente Lisboa, por ser esta cidade a chave de todos os recursos do reino, por não poder ser torneada pela retaguarda pelo inimigo, e finalmente por ser por meio d’ella, e do seu magnifico porto, que estava em segura e constante communicação com o mar, tanto porque d’elle lhe vinham os recursos de que precisava, como porque por meio d’ella podia effeituar uma retirada para o seu paiz, se porventura algum grande desastre a isto o obrigasse. Alem do exposto, esta posição dava-lhe de mais a mais a vantagem de dominar todas as estradas e caminhos, que a ella se dirigiam; de poder n’ella fortemente intrincheirar-se, e por modo tal, que podesse formar uma praça de armas, onde concentrasse todas as forças defensivas do reino, o exercito, as milicias e as mais tropas irregulares, e onde conjunctamente com os inglezes, estas forças estivessem aprovisionadas de viveres e munições por cero espaço de tempo, entretanto que elle ocuparia o campo de batalha que julgasse mais favoravel para decidir, quando lhe aprouvesse, n’uma acção geral a sorte da capital e do reino, e talvez mesmo que da Europa (3)”.

Uma interpretação mais recente questiona a opinião perfilhada pela “maior parte dos autores”, que defendiam “a opinião errada de serem as linhas de Torres Vedras destinadas a proteger Lisboa. Ora a verdade é que o fim das linhas que Wellington mandou levantar só subsidiariamente era esse. O seu projecto de campanha (...) era tornar praticamente impossível a vida de um exército invasor, destruindo ou transportando para outro ponto todas as produções utilizáveis do País. Assim a região escolhida pelos Franceses para seguirem a sua marcha em Portugal tornar-se-ia numa espécie de deserto, em que o invasor não poderia subsistir”. (...) O Governo Português procurou transportar para fora das suas residências os habitantes da zona em que operavam as tropas francesas, mas (...) a evacuação dessas regiões não foi total (…). Por outro lado, como as tropas inglesas tinham, em regra, mostrado fraca capacidade combativa no continente, Wellington procurava evitar uma acção que pudesse tornar-se geral, comprometendo a existência do seu exército, não só por motivos exclusivamente militares, mas também por causa da política interna da Inglaterra, onde existia um forte partido de oposição ao Governo e favorável à retirada das tropas expedicionárias para a sua Ilha.”.
Esta opinião é corroborada por Norris e Bremner (5), afirmando que em “Outubro de 1809 o plano de Wellington tinha incluído não mais do que uma linha contínua de obras desde Alhandra, no Tejo, até à foz de S. Lourenço (agora chamado Safarujo), no Atântico, com certos redutos e acampamentos fortificados colocados em frente de Torres Vedras, Monte Agraço, Arruda e outros pontos. Não era intenção ocupar estes reductos permanentemente”, mas apenas “deter e estorvar o ataque do inimigo na linha principal na retaguarda”.
Seja como for, Fletcher, depois de receber aquelas ordens por escrito em 20 de Outubro, dirigiu o início da construção das linhas que se iniciaram em 3 de Novembro de 1809 pela construção dos fortes de S. Julião, Sobral e Torres Vedras.

(1) J.J. Teixeira Botelho, História Popular da Guerra da Península, Porto, 1915, pp. 341-342
(2) Excerto do memorando do duque de Wellington para o tenente coronel Fletcher, datado de Lisboa , a 20 de Outubro de 1809, citado por A.H.Norris e R.W. Bremner, The Lines of Torres Vedras, Lisboa 1986, pp.20-21, segundo tradução de Thomas Croft de Moura.
(3) Simão José da Luz Soriano, Historia da Guerra Civil e do Estabelecimento do Governo Parlamentar em Portugal- segunda epocha- guerra peninsular, tomo II, Lisboa, Imprensa Nacional, 1871, pp. 535-536.
(4) Gastão de Mello de Mattos, “Torres Vedras, Linhas de (1810)”, in Dicionário de História de Portugal, vol. VI, 2ª ed. , pp.180 a 182.
(5) A.H.Norris e R.W. Bremner, The Lines of Torres Vedras, Lisboa 1986, pp.14-15, segundo tradução de Thomas Croft de Moura.

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