Introdução
Escolhemos a personalidade de António Macieira como tema desta nossa comunicação, não só pelo facto de ser uma figura bastante ligada ao concelho de Torres Vedras desde o tempo da propaganda republicana, como também, apesar dos altos cargos políticos que desempenhou durante a Primeira República, não ter merecido até hoje a atenção devida por parte dos estudiosos desse período.
António Macieira, recorde-se, figura entre os 161 notáveis republicanos retratados por Roque Gameiro na célebre aguarela Pela República .
Ao longo da sua curta vida profissional e política as sua opiniões e actividades apareceram frequentemente referidas na principal imprensa nacional da sua época, muitas vezes com chamadas de primeira página e figurando nos títulos de abertura.
Só a sua morte precoce pode justificar o esquecimento a que o seu nome tem sido votado.
Por razões de tempo e pela dificuldade em consultar alguma imprensa da época, não pudemos aprofundar como desejávamos o estudo da sua biografia, pelo que nos limitámos a esboçar a sua acção política durante o período da Primeira República e as suas relações com a vida política deste concelho.
Breves traços biográficos
António Macieira Júnior nasceu em Lisboa no dia 5 de Janeiro de 1875, filho do comerciante António Caetano Macieira e de Gertrudes da Conceição Celestino Biker Correia Macieira.
Concluiu estudos preparatórios em Lisboa, matriculando-se depois na Universidade de Coimbra onde se formou como bacharel em Direito em 10 de Junho de 1899, tendo sido aluno de Afonso Costa que nessa universidade leccionava, desde 1896, as disciplinas de “Economia Política e Estatística” e de “Organização Judiciária”.
Como aluno dessa Universidade, António Macieira fez parte da geração coimbrã que se notabilizou pela celebração do centenário da Sebenta e pelas homenagens a João de Deus, Antero de Quental e Sousa Martins.
Depois de se formar abriu banca de advogado em Lisboa, distinguindo-se na sua profissão pela publicação de vários trabalhos da especialidade.
Desposou D. Estefânia Macieira, da qual teve duas filhas e por cujo casamento se tornou concunhado do Dr. Egas Moniz.
Foi sócio do Instituto de Coimbra, da Associação de Advogados de Lisboa e da Associação de Legislação Comparada de Paris. Foi Cavaleiro da Legião de Honra e membro da Associação de Agricultores de Portugal.
Organizou ainda algumas das primeira corridas de automóvel em Portugal.
Mas foi na vida política republicana que mais se destacou.
O início da sua vida política no tempo da propaganda republicana
A sua ligação formal á vida política republicana teve início em 1907.
No Verão desse ano vários jornalistas, condenados pela lei de imprensa do ditador João Franco, foram julgados no tribunal da Boa-Hora, tendo-se distinguido na sua defesa o nosso António Macieira.
Ainda nesse ano foi um dos mais activos participantes na homenagem a Bernardino Machado que se tinha demitido do seu cargo como professor da Universidade de Coimbra em protesto contra a acção do governo de João Franco. Este tinha mandado encerrar a Universidade em 23 de Maio de 1907 para fazer frente à agitação estudantil desse ano.
Foi marcada para o dia 28 de Julho uma manifestação de apoio a Bernardino Machado que foi proibida pelo governo, sendo por isso essa manifestação substituída por uma romagem à casa daquela ilustre figura.
De entre as personalidades presentes nessa homenagem, com direito a figurar na fotografia oficial junto a Bernardino Machado, encontrava-se António Macieira.
O seu prestígio como advogado defensor de republicanos acentuou-se nos últimos anos da monarquia, nomeadamente na defesa em tribunal do “alferes Teixeira” e dos sargentos implicados na malograda revolta de 28 de Janeiro de 1908.
Na história oficial da República essa revolta foi considerada como uma “antecipação da jornada do 5 de Outubro” e um ensaio geral para o derrube da monarquia dois anos e meio depois. Depois do 31 de Janeiro de 1891 esta foi a mais importante revolta republicana contra a monarquia, com consequência indirecta no assassinato, poucos dias depois, do rei D. Carlos e na demissão do governo ditatorial de João Franco.
O processo contra aqueles oficiais subiu por duas vezes ao Supremo Tribunal de Justiça Militar, mas acabando os acusados por serem absolvidos, decisão que em muito contribuiu para o prestígio profissional de António Macieira como advogado de defesa ( “Movimento Malogrado”, in História da República, ed. “O Século”, [1960?], cap.XXV, pp.367-378).
Os seus dotes de advogado tiveram ainda outras ocasiões de se revelarem, quer na defesa de Machado dos Santos no Tribunal de Justiça da Armada, num processo por abuso de liberdade de imprensa, quer na defesa de vários marinheiros implicados na revolta do cruzador Vasco da Gama.
Nos anos de 1909 e 1910 António Macieira envolveu-se activamente nas crescentes acções de propaganda republicana, nomeadamente participando em sessões promovidas pela Junta Liberal.
Fundada em 1906 e presidida por Miguel Bombarda, a Junta Liberal tinha por objectivo principal combater o clericalismo. Com este objectivo percorreu o país organizando conferências de propaganda em 1909 e 1910 (OLIVEIRA, Dr. Lopes, “O termo da propaganda doutrinária. República e operariado”, in MONTALVOR, Luís (coord.), História do Regime Republicano em Portugal, Vol.II, Lx., 1932, Parte 3ª, Cap. I, pp.261-352).
Uma das suas iniciativas mais importantes foi a realização em Lisboa, no dia 1 de Agosto de 1909, de um comício anti-clerical que contou com a presença de 40 mil manifestantes e onde discursaram, entre outros, Miguel Bombarda, Magalhães Lima, o Visconde da Ribeira Brava e António Macieira.
No ano de 1910 aquela Junta organizou várias conferências em Centros Escolares Republicanos e na Associação Comercial de Lisboa, entre os dias 14 de Abril e 2 de Junho.
Foram conferencistas, entre outros, Alexandre Braga, Ana de Castro Osório, Ginestal Machado e Eusébio Leão.
A António Maceira coube a responsabilidade de encerrar essas conferências no dia 2 de Junho, no “Centro Escolar Republicano de Belém”, com a conferência intitulada “Os Jesuítas e a Reforma”.
Embora fosse um dos nomes mais destacados da propaganda republicana, o seu papel no 5 de Outubro terá sido o de mero espectador, conforme confessou mais tarde:
“Assistiu em parte a essa revolução como mero espectador, pois não é revolucionário, nem o é quem quer, e não gosta de se arrogar direitos que não tenha.
“Mas assistiu a ella com o carinho d’aquelles que teem no seu espirito bem arreigadas e fundas, e bem antigas, as ideias republicanas.
“Não é capaz de avaliar até que ponto chegaria a sua bravura, se tivesse disposto do seu braço em favor d’essa revolução, pois nunca teve ensejo de a experimentar.
“Mas sabe apreciar a bravura d’aquelles que honraram o nome português implantando a República” (Diário da Assembleia Nacional Constituinte, sessão nº25 de 19 de Julho de 1911).
Com o advento da República, António Macieira fundou e dirigiu o diário republicano “O Tempo”, afecto à ala de Afonso Costa, jornal de curta duração (publicou-se entre 16 de Março e 31 de Maio de 1911) e que, infelizmente, não estava disponível para consulta na Biblioteca Nacional à data em que realizámos este trabalho.
Ainda antes das eleições Constituintes de 1911, António Macieira exerceu, durante o governo provisório, as funções de adjunto do Procurador Geral da República.
António Macieira deputado por Torres Vedras
António Macieira era proprietário, no concelho de Torres Vedras, da Quinta do casal da Folgorosa, freguesia de Dois Portos.
Coincidência ou não, esta freguesia foi uma daquelas que mais fervor republicano revelou, quer no período da propaganda, quer no período pós 5 de Outubro.
Aliás, um dos homens que em Dois Portos mais se destacou na propaganda republicana foi Faustino Policarpo Timóteo, durante anos conotado como o representante no concelho dos interesses políticos e económicos de António Macieira, embora se tenham desentendido mais tarde.
Durante o tempo da propaganda este notável republicano participou em várias actividades ligadas à afirmação no concelho da ideologia e organização republicanas.
A ligação de António Macieira a Torres Vedras tornou-se mais evidente quando, após o estabelecimento do regime republicano, este concelho passou a ser a sede de um importante círculo eleitoral, o nº 37, que elegia 3 deputados e se estendia até aos concelhos da Lourinhã e Cascais, passando por Mafra, Sintra e Oeiras.
A ligação política local entre António Macieira e Faustino Policarpo Timóteo esteve na origem das primeiras divergências entre os republicanos locais.
Tudo começou devido à escolha dos candidatos do Círculo Eleitoral de Torres Vedras às eleições constituintes de 1911.
Na véspera da reunião da comissão distrital republicana para escolha dos candidatos do PRP àquelas eleições, Faustino Policarpo Timóteo, vereador, à beira da demissão, da Câmara Municipal de Torres Vedras e presidente da junta de freguesia de Dois Portos, acusava, em carta publicada n’ “O Mundo” de 8 de Maio de 1911, o presidente da Comissão Municipal Republicana de Torres Vedras, Manuel Augusto Baptista, de andar pelas comissões paroquiais, com outros republicanos torrienses , a pedir para não votarem na candidatura de António Macieira. Segundo Policarpo Timóteo, esta atitude desrespeitava uma decisão anteriormente tomada, por unanimidade, numa reunião de todas as comissões paroquiais do concelho.
Os republicanos torrienses citados na carta de Policarpo Timóteo, Manuel Augusto Baptista, Manuel Coelho Cláudio Graça e Júlio Vieira, vieram a terreiro, na imprensa local (já que as suas cartas de resposta tinham sido censuradas pel’ “O Mundo”), desmentir e contradizer aquele republicano.
Segundo eles, as comissões paroquiais haviam-se pronunciado sim, mas a favor da candidatura de Tiago Sales e terá sido Faustino Timóteo numa outra reunião, das juntas de paróquia e não das comissões paroquiais republicanas, a defender, segundo aqueles a despropósito, a candidatura de António Macieira.
Júlio Vieira foi mesmo mais explicito na sua resposta, ao justificar o motivo pelo qual a candidatura de António Macieira não era bem vista pelos republicanos locais, apesar da consideração pessoal que este lhe merecia.
Para Júlio Vieira a razão da aversão à candidatura de António Macieira residia mais no facto de ela ser apresentada por Faustino Policarpo Timóteo do que na candidatura em si. É que Faustino Timóteo tinha sido um dos subscritores de uma proposta de desmembramento do concelho de Torres Vedras a favor do concelho do Sobral de Monte Agraço, à custa da integração da freguesia de Dois Portos neste concelho.
Os republicanos de Torres Vedras acabaram por apresentar como seu candidato oficial o nome de Tiago Sales, médico da Lourinhã, ignorando deste modo as pretensões de António Macieira.
No dia 9 de Maio a comissão distrital do Partido Republicano sancionou oficialmente, não só aquela candidatura , como as de Tomé de Barros Queirós e José Cordeiro Júnior, todos pela maioria, e a do capitão Augusto da Costa Malheiro pela minoria .
Nas eleições constituintes de 28 de Maio de 1911 estavam em causa, pelo círculo de Torres Vedras, 4 lugares, três pela “maioria” e um pela “minoria”. Não existindo concorrência oficial aos candidatos apresentados oficialmente pelo Partido Republicano, tudo parecia encaminhar-se para que os candidatos oficiais fossem eleitos sem problemas.
Contudo, até ao fim do prazo de apresentação de candidaturas, foram entregues, para concorrer ao Círculo de T. Vedras, várias propostas de candidaturas não oficiais ao lugar a disputar pela “minoria”, entre as quais a de António Macieira. Esta situação frustou o intento dos republicanos de Torres Vedras de conseguirem que o pleno dos lugares elegíveis fosse ocupado apenas pelos candidatos oficiais.
Note-se que aquela táctica resultou nalguns círculos do país, onde os candidatos oficiais do Directório concorreram sem qualquer oposição às “maiorias” e às “minorias”, chegando mesmo, nalguns deles, a dispensar-se a ida às urnas, pela ausência de outros concorrentes.
Realizado o acto eleitoral, António Macieira conseguiu ser o mais votado no concelho de Torres Vedras e o quarto mais votado no círculo, sendo assim eleito pela minoria, derrotando o candidato oficial a este lugar.
O seu êxito eleitoral neste concelho ficou em grande parte a dever-se à votação esmagadora que conseguiu obter na assembleia eleitoral da Ribaldeira (que incluía os eleitores da freguesia de Dois Portos), tendo vencido igualmente na assembleia do Turcifal, já que nas assembleias da vila (a de S. Pedro e a de S. Tiago) obteve apenas o 4º lugar, mesmo assim batendo o candidato oficial à minoria.
Mais tarde, nas eleições de 13 de Junho de 1915, António Macieira voltou a ser eleito deputado pelo círculo de Torres Vedras, mas desta vez como candidato oficial do PRP e o mais votado, não só no concelho de Torres Vedras como no conjunto do círculo (MATOS, Venerando Aspra de, Republicanos de Torres Vedras – elites, partidos, eleições e poder (1907-1931), ed. Colibri – C.M.T.Vedras, 2003).
António Macieira, deputado na Assembleia Constituinte
A Assembleia Nacional Constituinte de 1911 iniciou os seus trabalhos em 19 de Junho.
Na sessão de 19 de Julho António Macieira apresentou a sua primeira proposta, um projecto para autorizar o governo a cunhar uma medalha comemorativa da Revolução “de 3 para 5 de Outubro de 1910”, para ser “concedida a todos os militares e civis que nella tomaram parte, combatendo pela Pátria e pela República”.
Fundamentou esta sua proposta pelo facto de entender “que aquelles que até aqui não tiveram consagração pelos feitos de heroismo que praticaram, em prol das ideias que defenderam tão nobremente (...) precisam de ser individualmente apontados”, apresentando assim esse projecto de lei “para o Povo, para a massa anonyma, para o soldado, para o sargento, emfim em especial para todo o popular da caserna e da rua que soube cumprir o seu dever nos gloriosos dias da Revolução”. Recordou ainda “que foi (...) esse Povo que, depois da Revolução, logo começou obra constructiva pondo ao abrigo de qualquer prejuizo a fazenda e a vida de todos” concluindo que um “povo que assim procede demonstra as suas altas e levantadas virtudes civicas e por isso bem merece da Assembleia a justa consagração dos seus actos”(in Diário da Assembleia Nacional Constituinte, sessão nº25, 19 de Julho de 1911).
Em relação ao projecto constitucional, as frequentes intervenções de António Macieira, restringiram-se quase sempre à abordagem de questões técnicas de ordem jurídica.
Contudo, pelo menos em duas ocasiões, abordou questões de ordem política que nos permitem conhecer um pouco melhor as suas ideais:
Numa, por ocasião da discussão do artigo 1º da Constituição, sobre a forma de governo, apresentou como proposta a seguinte redacção para esse artigo: “A Nação Portuguesa unitária, adopta como forma de governo a República, nos termos d’esta Constituição”.
António Macieira fundamentava a sua proposta nos seguintes termos:
“Há quem queira que se consigne o principio da liberdade e independência da Nação;
“uns desejam que no artigo 1º se affirme que a Republica será democrática;
“ outros que será parlamentar;
“alguns que será democrática parlamentar;
“e ainda outros que se preceitue a unidade ou federalismo do Território da República.
“(...) Digo apenas, que não há necessidade de se definir no artigo 1º qual a forma de República Portuguesa; ella se definirá nos artigos subsequentes”
Passa então a desmontar aquelas várias designações:
“República Democrática? Aqui está uma cousa difícil de definir.
“Para mim a verdadeira democracia é aquella que é exercida directamente pelo povo, em que o poder judicial, o poder executivo e o poder legislativo são exercidos directamente, o Governo do Povo pelo Povo.
“Essa é a verdadeira democracia; mas como isso é impossível, por virtude da densidade da população e extensão do território (...) eu, que não sou um romântico, não defendo praticamente tal systema.
“(...) A República será democrática, ou não, consoante o que a Constituição affirmar nas suas disposições, e não pelo que se puzer no artigo 1º.
“Não concordo com o termo parlamentar pelas mesmas razões” e porque “ a não deseja como direito de dissolução e veto”.
Também não concordava que fosse federativa porque Portugal “não estava em estado de cultura, civilização e progresso, sufficientemente educado, para se afirmar (...) que a República será federativa” ( in Diário da Assembleia Nacional Constituinte, sessão nº28, 24 de Julho de 1911).
A redacção final do primeiro artigo da Constituição de 1911 acabou por ficar muito próxima da proposta de António Macieira: “A Nação Portuguesa, organizada em Estado Unitário, adopta como forma de governo a República, nos termos desta Constituição” MIRANDA, Jorge, O Constitucionalismo liberal luso-brasileiro, ed. CNCDP, Lx. 2001, p.181).
A outra ocasião em que ficou evidente o ideário de António Macieira aconteceu quando da discussão da aplicação do sistema bicameral.
António Macieira defendeu tal sistema, justificando-o pelo facto do “temperamento português” ser “fundamentalmente impulsivo, arrebatado. Nós não temos culpa dos defeitos da nossa raça, se defeito pode considerar-se essa qualidade que tantas glórias trouxe á nossa história; mas a verdade é que este temperamento arrebatado, apaixonado e meridional, leva muitas vezes a resoluções precipitadas que necessitam (...) de uma correcção, (...) de um tribunal de revisto, permitta-se-me o termo, que, a meu ver, deve no caso ser encontrado na Segunda Câmara”(in Diário da Assembleia Nacional Constituinte, sessão nº 37, 3 de Agosto de 1911).
Também neste caso, António Macieira esteve ao lado da decisão final que foi a aprovação constitucional da existência de duas câmara, a Câmara dos Deputados, eleita por três anos, e o Senado, eleito por 6 anos, mas renovado em 50% de 3 em 3 anos. Estas duas Câmaras exerciam em conjunto o Poder Legislativo no Congresso da República.
Visita triunfal a Torres Vedras
António Macieira não se esqueceu do apoio que a sua candidatura de 1911 recebeu no concelho de Torres Vedras, principalmente nas freguesias de Dois Portos e Turcifal.
No final de 1911, apenas um mês depois de ter sido investido como Ministro da Justiça, realizou uma visita política ao concelho de Torres Vedras .
Na sua edição de 20 de Novembro de 1911, o diário “O Mundo” intitulava a reportagem sobre essa visita como “excursão triunfal a Dois Portos, Runa, Torres Vedras e Turcifal”, da qual reproduzimos as seguintes passagem, bem significativas do impacto desse acontecimento neste concelho:
O “dr. António Macieira conta no concelho de Torres Vedras inumeras simpatias.
“A votação extraordinaria que obteve nas ultimas eleições, mostrou-o bem.
“Profundamente comovido nos dizia no automovel o illustre ministro da Justiça:
“- Não calcula, meu amigo, a amizade que toda esta boa gente me dedica. Adoram-me com verdadeira loucura e estavam prontas a dar a sua vida, se me vissem num perigo eminente. Ainda há pouco tempo me disse um nosso correligionario: “Sr. doutor, este povo ama-o, como se ama um filho querido!”. E realmente assim é...”
Saído de Lisboa em automóvel pelas 12.30, na companhia do seu secretário e de dois jornalistas de “O Mundo”, avistou Dois Portos, a primeira paragem da sua visita ao concelho de Torres Vedras, pelas 3 da tarde.
Ao chegar a Dois Portos “começaram a aparecer então figuras curiosas de trabalhadores, ingenuos simples, dspreocupados e alegres, que saudavam com calor o sr. ministro e o novo governo , tirando respeitosamente os seus barretes”, sendo saudado com “girandolas e foguetes” e com “entusiasticas Vivas à Pátria e à República.
“As ruas e lugares estavam vistosamente ornamentadas com flores e bandeiras nacionais”, apresentando cumprimentos em nome do povo de Dois Portos “o nosso dedicado correligionario Faustino Policarpo Timoteo”.
A comitiva seguiu depois para Runa à entrada da qual a esperavam de automovel “muitos dedicados republicanos”, entre eles alguns membros do Centro Republicano de Runa, baptizado com o nome de Centro Republicano Dr. António Macieira, acompanhando o seu percurso até Torres Vedras.
“Em Torres Vedras a recepção foi imponentissima. O antigo baluarte da reacção transformou-se completamente.
“Apesar de todos os maneios reaccionários, o povo dali aproveita sempre a ocasião de se declarar fervorosamente republicano”.
Aqui chegado, António Macieira pronunciou do automóvel que o transportava um discurso, saudando “os eleitores queridos (...) porque à força dos vossos votos honestos se deve a minha actual situação política”, saudando até os seus inimigos, “porque o bom republicano deve ter sempre uma grande generosidade a guiar as seus actos”.
Ao terminar a sua intervenção uma banda local tocou a portuguesa, pouco se demorando na vila de Torres Vedras, seguindo de imediato com destino ao Turcifal onde chegou pelas 4 e meia da tarde.
O ministro e os seus acompanhantes apearam-se junto ao “palacete” de “José dos Santos Pedra”[ou seria Pedreira ?], frente ao qual estava montada uma mesa onde se realizou uma boda a 80 pobres, 60 “favorecidos por iniciativa do sr. ministro da Justiça e os vinte restantes pela comissão parochial”. O bodo compunha-se de 500 gramas de carne, 500 gramas de arroz, 250 gramas de toucinho, meio pão e 100 réis em dinheiro.
Durante esse acto, da janela do palacete, o Dr. António Macieira fez um discurso aos presentes, durando cerca de 45 minutos [ a duração dos seus discursos era conhecida pelos seus colegas do parlamento, suscitando frequentemente, da parte destes, protestos e comentários irónicos] tecendo duras críticas ao clero e defendendo a Lei da Separação
A visita terminou num banquete com a presença de 90 convidados, tendo o ministro saído do Turcifal na direcção de Lisboa por volta da nove horas da noite (in O Mundo, 20 de Novembro de 1911).
Ministro da Justiça
A cisão dentro do PRP, entre “moderados” e “radicais” tinha-se revelado ao longo do ano de 1911, quer na Assembleia, quer nos primeiros governos, acentuando-se em Outubro desse ano durante o Congresso do PRP, no qual assume o poder a facção “afonsista”, à qual se opões a facção “bloquista”, que, depois de formar a União Nacional Republicana, vai dar origem aos dois principais partidos que se irão opor ao novo PRR, o partido evolucionista e o partido unionista .
O novo Directório do PRP, constituído por Teófilo Braga, Magalhães Lima, Correia Barreto, Luís Filipe da Mata e Pereira Osório, toma posse em 7 de Novembro.
Na sequência da eleição do novo directório, o primeiro governo constitucional, presidido por João Chagas, pede a demissão, formando-se um novo governo constitucional, presidido por Augusto Vasconcelos, dito de “concentração”, já que incluía representantes das duas principais facções republicanas, os “bloquistas”, representados pelo próprio presidente do conselho de ministros, que acumulava com a paste dos negócios estrangeiros, por Alberto Silveira, ministro da guerra, por Celestino de Almeida no ministério da marinha e Sidónio Pais nas finanças. Silvestre Falcão, no Interior, concluia o leque de ministros não afonsistas. Estevão de Vasconcelos no Fomento, Freitas Ribeiro nas Colónias e António Macieira na Justiça, como representantes da facção afonsista, também apelidada de “democrática”, completavam o elenco ministerial .
Segundo algumas opiniões “com o Dr. António Macieira na pasta da Justiça (este advogado fora assíduo colaborador de Afonso Costa em leis como a do registo Civil e a da Separação) a questão religiosa reacendeu-se, o gabinete toma feição anti-clerical” (RIBEIRO, Ângelo “Consolidação do novo regime”, in PERES, Damião (Dir.), História de Portugal, Vol. VII, Portucalense Editora Lda., Barcelos, 1935, cap. XVII, p. 484).
A acção do Ministério da Justiça dirigido por António Macieira comprova essa opinião, pois, tomando o governo posse em 16 de Novembro de 1911, logo em 24 desse mês a se revela a sua tendência ant-iclerical com a publicação de um decreto condenando o arcebispo da Guarda a residência fixa no seu distrito durante dois anos e à suspensão de funções por desrespeito da lei da separação.
Mas uma das medidas mais polémicas do ministério de António Macieira vai ser a publicação do decreto de 28 de Dezembro suspendendo vários dignatários da Igreja, entre eles o próprio Patriarca de Lisboa, António Mendes Belo, com perda de liberdade de circulação e de benefícios materiais.
A publicação dos chamados “decretos de suspensão” tornaram-se prática corrente do Ministério da Justiça sob direcção de António Macieira, atingindo grande parte dos responsáveis máximos da Igreja portuguesa: o Arcebispo da Guarda (Decreto de 24/11/1911); o Patriarca de Lisboa, o Arcebispo da Guarda e o governador do bispado do Porto ( Decreto de 28/12/1911); o Bispo de Viseu , o Bispo do Algarve e o governador do bispado de Coimbra (Decreto de 6/1/1912); o Bispo de Lamego (12/2/1912); o Bispo de Bragança (Decreto de 16/3/1912).
Mas a acção mais importante do seu ministério foi marcada pela aplicação da Lei da Separação da Igreja do Estado, que tinha sido aprovado em 20 de Abril de 1911, uma das mais polémicas da Primeira República.
Aquela lei consagrava a Independência do estado em relação ao culto, nomeadamente no seu artigo 4º onde se refere que a República “não reconhece, não sustente, nem subsidia culto algum”.
Mas os artigos mais polémico dessa lei terão sido os artigos 55 e 62.
No primeiro consagrava-se a “proibição do culto externo” [“os actos de culto de qualquer religião fora dos lugares a isso destinados, incluindo os funerais ou honras fúnebres com cerimonias cultuais, importa a pena de desobediência (...) quando não se tiver obtido, ou for negado, o consentimento por escrito da respectiva autoridade administrativa”], com consequência na proibição da tradicionais procissões.
No segundo expropriava-se a Igreja de muitos dos seus bens [“todas as catedrais, igrejas e capelas, bem imobiliários e mobiliários, que têm sido ou se destinam a ser aplicadas ao culto público da religião católica e à sustentação dos ministros dessa religião (...) são declarados, salvo o caso de propriedade bem determinada de uma pessoa particular ou de uma corporação com individualidade jurídica, pertença do Estado” e dos corpos administrativos].
Ainda de acordo com essa lei a Igreja perdia o controle do ensino e os párocos passavam a ser considerados como uma espécie de funcionários públicos, pagos pelo Estado.
Alguns artigos raivam mesmo a provocação, como o artigo 152 que estabelecia pensões para as “viúvas e filhos de padres”( Lei da Separação da Igreja do Estado de 20 de Abril de 1911).
Para além do cumprimento dessa polémica lei, uma das grandes batalhas do Ministério de António Macieira foi a do cumprimento da formação das chamadas “Associações Cultuais”, corporações responsáveis pelo culto previstas nessa lei.
Questionado na Câmara dos Deputados no dia 20 de Dezembro de 1911 pelo deputado Carlos Olavo sobre a forma como o Ministro da Justiça pretendia actuar e fazer cumprir a Lei da Separação, face ao caso de uma circular enviada aos fiéis e ao clero pelo Patriarca de Lisboa, determinando que estes não contribuíssem para a organização dos corpos destinados aos exercícios do culto (as tais Associações Cultuais), António Macieira respondeu nos seguintes termos:
“ A República só tem uma resposta - : é fazer respeitar a lei da Separação”.
E em defesa do estabelecimento das Associações Cultuais, considerava que estas “foram estabelecidas pela lei da Separação, como absolutamente indispensáveis e como de interesse público; foram constituídas como corpos destinados a subvencionar o culto, mas também com o fim principal de assistência e beneficiência;
“Permitiu-se que as associações cultuais se organizassem por mais de uma forma; primeiro que fôssem as instituições de carácter de beneficiência e assistência as que as organizassem; e quando não houvesse misericordias, que tinham a preferência, qualquer instituto, como hospícios, creches, albergarias e albergues; e na sua falta as confrarias e irmandades.
“(...) vê-se, claramente que a lei da Separação respeitou os corpos regulares da igreja, que são as irmandades e confrarias.
“e ainda quando não pudessem numa paróquia constituir-se as cultuais, permitia a lei da Separação que elas se pudessem organizar pelos agregados da paróquia; e, quando ainda a não pudessem fazer, a Lei da Separação permitia que os fiéis se reunissem e, por sua iniciativa, estabelecessem a cultual.
“(...) Não se levantou dificuldade alguma à sua organização. Se elas não existem em alguns lugares, é simplesmente porque a igreja, contra o seu próprio prestigio, tem vivido numa forma de rebelião realmente lamentável”( in Diário da Câmara dos Deputados, sessão nº 14 de 20 de Dezembro de 1911).
No dia 6 de Janeiro de 1912 António Macieira, como Ministro da Justiça, fazia publicar um edital para esclarecer a interpretação sobre a forma como a Lei da Separação entendia a organização e funções das associações cultuais, a fim desfazer “falsidades e mal entendidos” .
Começava por esclarecer que elas se podiam organizar até 12 de Dezembro, tendo como função administrarem a Igreja, os móveis e alfaias destinadas ao culto católico.
Enquanto as “Cultuais” não estivessem organizadas “o culto pode continuar a exercer-se pela mesma forma por que o tem sido até hoje, por intermédio de agrupamentos cultuais transitórios”.
Ficavam aquelas associações obrigadas a entregar 1/3 do que recebiam para fins cultuais à beneficência ou à assistência (ou 1/6 se tivessem que prover ao “sustento e habitação do ministro do culto”).
Procurava depois apaziguar os ânimos da Igreja ao esclarecer que “a Lei da Separação não proíbe o culto nem ataca as religiões” nem o Estado quer “como aliás de má fé se tem dito, tomar conta dos bens ou rendimentos das mencionadas corporações que se harmonizem com a Lei da Separação”.
Como garantia da sua boa fé esclarecia que, mesmo não se organizando nalgumas freguesias as “cultuais” ou que as irmandades existentes não se quisessem encarregar do culto, “nem por isso o estado fechará as suas igrejas onde estejam (...) erectas irmandades e confrarias, as quais poderão continuar a exercer o seu culto por intermédio dos seus ministros privativos”.
Concluía no seu edital, que fez afixar por todo o país, que se “as igrejas forem abandonadas pelos párocos ou estes não quizerem cumprir os seus deveres para com os fiéis (...) a culpa é sómente “ deles “ pois a República em nada concorre para isso, antes facilita por todas as formas a maior liberdade de consciência e de culto”(in O Mundo, 6 de Janeiro de 1912).
Por causa deste edital António Macieira foi acusado, na sessão da Câmara dos Deputados de 17 de Janeiro, de fazer alterações à Lei da Separação, nomeadamente por prolongar o prazo para a formação das Cultuais.
A essa acusação respondeu o Ministro nos seguintes termos:
“O edital do ministério da Justiça foi a melhor forma, que o Ministro da Justiça encontrou, para desfazer por completo campanha injusta e de difamação contra a lei de Separação. Havia pessoas que tinham sido enganadas pelos padres que, nas práticas matutinas, longe da fiscalização das pessoas cultas, diziam ao pobre povo cousas contrárias à Lei da Separação.
“Pretendeu o edital contrariar as afirmações, que na imprensa se faziam expressar” sobre “essa lei e o seu texto” e “desfazer dúvidas, que porventura podia haver de parte das pessoas de boa fé”(in Diário da Câmara dos Deputados, sessão nº 35 de 17 de Janeiro de 1912).
As suas críticas à Igreja e a defesa do cumprimento da Lei da Separação foram subindo de tom ao longo do seu mandato.
Em Março, na Câmara dos Deputados, acusava os padres de não exercerem a sua missão espiritual como deviam, “porque eles não se contentam com essa missão, e querem arrogar-se o direito de fazer da religião uma arma política” contra o “Estado republicano”, avisando-os de “em quanto eu estiver neste lugar (...) esses cavalheiros hão-de ser metidos na ordem”(in Diário da Câmara dos Deputados, sessão nº de 22 de Março de 1912).
Ao longo do seu ministério cresceu a contestação à aplicação da Lei da Separação, inclusive no seio dos próprios republicanos, com o recém criado Partido Evolucionista à cabeça dos críticos.
Respondendo às críticas deste partido, António Macieira profere na Câmara dos Deputados um dos seus mais firmes e violentos discursos anticlericais :
“Querem a religião à solta?
“Que lhes diz a história antiga e moderna?
“Que lhes diz a política de Roma?
“Não lhes diz que a Santa Sé arvora a bandeira da reacção sustentando de volta a Companhia de Jesus, a supremacia da igreja sobre o Estado?
“Não lhes diz, portanto, que o Estado tem obrigação de defender-se dessa política, uma vez que ela quer interferir na acção do Estado ?
“Não lhes diz a nossa história que, de facto, os prelados e os padres nas crises políticas do país outra cousa não fizeram senão a política do confessionário, a política do púlpito, a política das pastorais, a política das ruas, até armando-se contra os liberais para defender o despotismo?
“(...)
“Não sabem (...), qual tem sido, modernamente, a política dos prelados e dos padres, que é uma política de sedição, que é uma política de rebelião contra as leis da República, contra a própria república?
“(...)
“Não é a igreja livre, num Estado livre que a República escolheu para regime de relação com a igreja. É da separação com fiscalização por parte do Estado para evitar que a igreja se desmande já que sempre tem demonstrado, a católica sobretudo, que sabe fazer muita política e pouca religião.
“(...)
“Se a igreja se mantivesse, exclusivamente, na sua atribuição; se a igreja não tivesse deturpado o regime democrático, sua base inicial, se não tivesse esquecido as máximas simples de Cristo, substituindo pela de ouro a cruz de pau, simbólica da pobreza e simplicidade, a igreja não seria fiscalizada, porque, evidentemente, ninguém pretende privá-la do seu legítimo exercício mas tem somente obrigá-la a que nele e só nele se mantenha”( in Diário da Câmara dos Deputados, sessão nº 109 de 14 de Maio de 1912).
Perante o acentuar do confronto político entre a Igreja e o ministério da Justiça por causa da aplicação da Lei da Separação, realizaram-se várias manifestações de rua e homenagens a António Macieira.
A mais importante de todas foi a manifestação de 14 de Janeiro de 1912, que procurou responder a uma outra manifestação realizada no primeiro dia desse ano frente ao patriarcado (em S. Vicente) para protestar contra o decreto de suspensão do Patriarca e que tinha contado com a presença de destacadas figuras o meio católico e do meio monárquico.
Descrevendo, com honras de primeira página, aquela manifestação de 14 de Janeiro, o jornal republicano “O Mundo” classifica-a como uma grande manifestação de apoio ao ministro da justiça onde “o povo de Lisboa proclamou claro e eloquentemente, sem ofender as crenças de ninguém, que não admite a influência do clericalismo (...). São livres todos os cultos, são livres todas as crenças, mas a religião não pode ser e não será mais uma arma de exploração e de tirania política. Assim o proclamou a lei. Assim o decretou ontem, mais uma vez o povo”.
A manifestação foi organizada pela Associação do Registo Civil para apoiar a “lei da separação do Estado das igrejas, obra colossal de Afonso Costa e que António Macieira com mais que louvável energia está pondo em vigor”(in O Mundo, 15 de Janeiro de 1912).
A manifestação concentrou-se na Praça dos Restauradores e nela discursaram, entre outros, Magalhães Lima e o próprio António Macieira.
António Macieira e o movimento operário
Os conflitos com a Igreja fizeram passar para segundo plano, quer outras medidas do seu ministério, quer outros acontecimentos graves que o mesmo teve de enfrentar.
No primeiro caso deve destacar-se a “lei da responsabilidade ministerial” e a procura de melhorias nas condições de funcionamento dos estabelecimentos prisionais.
A lei da responsabilidade ministerial visava responsabilizar o poder executivo, ou qualquer um dos seus membros, face ao poder legislativo, considerando como crimes que responsabilizavam o executivo o desrespeito da constituição, a dissolução de qualquer das câmaras legislativas ou o crime de golpe de Estado.
Podiam tomar iniciativa contra o executivo, caso este praticasse qualquer um desses crimes previstos, qualquer cidadão no gozo perfeito dos seus direitos civis e políticos, residente em Portugal, o representante de um grupo mínimo de 25 deputados ou senadores , as comissões parlamentares de inquérito ou sindicância, ou o Ministério Público( in Diário da Câmara dos Deputados, sessão nº6, 8 de Dezembro de 1911).
A melhoria dos serviços prisionais motivou, por seu lado, a visita do Ministro aos estabelecimentos prisionais, com vista a inteirar-se das suas condições e procurar melhorá-las “dentro da humanidade e da justiça”(in Diário da Câmara dos Deputados, sessão nº35, 17 de Janeiro de 1912).
No segundo caso destacou-se a greve de 28 de Janeiro de 1912 em Évora, que atingiu quase o ponto de insurreição ao alastrar-se a Lisboa e motivar a Greve Geral de 29 e 30 de Janeiro.
Aquela greve foi desencadeada pelos trabalhadores rurais de Évora, por razões salariais. O governo acusou os reaccionários e os anarquistas de estarem por detrás do movimento e efectuou centenas de prisões em Évora.
Como resposta à atitude do governo, a União dos Sindicatos proclamou uma Greve Geral para os dias seguintes. Em resposta o governo proclamou o Estado de Sítio no dia 30 e efectuou mais prisões, não só de elementos do movimento operário, mas também de monárquicos.
O edifício da União Operária em Lisboa foi cercado e só aí foram efectuadas 500 prisões. Em dois dias o movimento grevista foi abafado.
Coube a António Macieira justificar no parlamento a acção repressiva tomada pelo governo:
Defendendo o direito à greve como um direito legítimo e comparando-o “tanto como o exercício do direito à vida”, considerava, contudo, que “a greve exercida ilegalmente, com o abuso do direito, para que seja mantida pela violência e pela força, levando essa força e essa violência ao máximo, qual é o emprego exclusivo da perturbação completa da ordem pública, estabelecida numa cidade inteira [Lisboa], que é uma cidade civilizada, querendo torná-la numa cidade bárbara, isso (...) não é legítimo, é abuso, é incoerência lamentável e punível”.
Face a isso, o ministro da Justiça apresentou uma proposta de lei para criação de tribunais militares territoriais, com sede em Lisboa, para julgar os réus presos ao abrigo do decreto de Estado de Sítio de 30 de Janeiro, estabelecendo regras de julgamento, concluindo ser essa proposta uma medida excepcional que não era culpa da República, mas “dos que perturbaram a ordem na cidade de Lisboa”(in Diário da Câmara dos Deputados, sessão nº 44, de 1 de Fevereiro de 1912).
Um mês depois, fundamentando a declaração do Estado de Sítio e a criação daqueles tribunais militares, António Macieira propôs a extinção destes:
“Pela cidade tinham explodido bombas;
“por três vezes os eléctricos, que queriam tomar o trabalho, não o puderam fazer por impedimento dos elementos agitadores;
“A autoridade foi atacada em mais dum lugar;
“Um administrador do concelho veio a morrer de gravíssimos golpes que lhe vibraram.
“Todos viram que a suspensão de garantias, reclamada pela opinião pública e só decretada depois de instantes queixas, simultaneamente, que deu lugar à integração da força militar na sua própria disciplina e lhe deu a conhecer que a República confiava nela, permitiu a demonstração cabal que a República podia nela confiar.
“Essa suspensão de garantias era absolutamente indispensável.
“Declarou-se o estado de sítio com todas as suas consequências boas ou más. Boas foram felizmente, pois tudo entrou na ordem imediatamente, sem que uma só morte ou ferimento grave houvesse a lamentar, o que prova a prudência das autoridades militares”.
Mas para provar que a “República é generosa, não tem ódios, não se deixa apaixonar” propunha que os “agentes dos crimes” fossem julgados pelos tribunais criminais comuns, extinguindo os tribunais militares criados para julgar os insurrectos( in Diário da Câmara dos Deputados, sessão nº 65, de 6 de Março de 1912).
Nessa mesma ocasião, António Macieira, ao justificar a sua acção face àquele movimento grevista, revelava muito das suas ideias sobre o movimento operário e do tipo de relação que este, quanto a si, devia manter com a República :
“Sabe-se muito bem que o movimento sindicalista revolucionário, ainda quando é fundado em razões de ordem económica e de bem estar do operariado, está por mais de um motivo hoje condenado em todos os países na sua forma violenta (...).
“Sabe-se bem que ultimamente no Congresso de Lyon socialistas houve, e muitos, que apoiaram a declaração de que a greve é uma espada de dois gumes, que na maior parte das vezes agride mais aqueles que a usam do que aqueles contra quem ela é usada (...).
“O direito à greve é inteiramente legítimo, não há dúvida: mas convenientemente exercido com todos os direitos (...); legítimo não é quando dá perturbação da vida social sobretudo a dum povo que quer progredir e evolucionar e principalmente ainda quando trás o perigo a uma instituição nascente que, estando na sua fase de organização, precisa do cuidado, do carinho e do amor de todos aqueles que andam em volta dela (....
“E dessa instituição, da República, não pode com justiça o operariado queixar-se; pois que (...) basta atender a que dentro dela maior é a expressão, bem demonstrada já, das classes trabalhadoras”(in Diário da Câmara dos Deputados, sessão nº 65, 6 de Março de 1912).
Saída por entrada...
Em Março de 1912 o governo começava a dar sérios sinais de divisão interna e fragilização política.
Tudo começou quando, a 5 de Março, António José de Almeida propõe na câmara dos deputados uma amnistia para os conspiradores monárquicos presos, conseguindo que a sua moção fosse aprovada com 63 votos a favor contra 26, pondo assim em causa os republicanos mais radicais do governo, entre eles António Macieira.
No dia 18 Afonso Costa regressa da Suiça e é recebido em apoteose, aproveitando a ocasião para lançar a afirmação de que era o PRP que devia governar, sem a presença de outras tendências.
Os ânimos do PRP mantêm-se acesos nos dias seguintes, com as comemorações do primeiro aniversário da aprovação da Lei da Separação (no dia 20) e com a realização em Braga do Congresso do PRP (no dia 26 de Março), no qual não comparecem os almeidistas (“evolucionistas”) nem os “unionistas”, assumindo-se aquele partido como o único partido republicano (também designado de “democrático”).
Dias depois os “democráticos” reiteram o seu apoio ao governo, mas excluindo desse apoio o ministro do Interior, Silvestre Falcão, um “unionista”, acusando-o de se revelar pouco enérgico na defesa das instituições.
Para forçar a clarificação da posição do PRP sobre o governo, no dia 4 de Junho António José de Almeida propõe no parlamento uma moção de confiança ao governo.
Os democráticos aprovam a moção, mas com uma declaração de voto excluindo Silvestre Falcão dessa confiança. Perante essa atitude o governo pede a demissão.
António Macieira, apesar de ser um dos mais fiéis representantes do afonsismo no governo, via-se assim obrigado a interromper a sua actividade ministerial.
Fazendo o balanço da actividade de António Macieira como Ministro da Justiça, o porta-voz do PRP, o jornal “O Mundo”, referia-se a ela nos seguintes termos:
“Na forma por que executou as leis do registo civil e da Separação mostrou Ter poderosas faculdades de acção e de energia e estar absolutamente integrado na única política que pode servir a República. Impondo respeito ao clericalismo, conseguiu ao mesmo tempo dominar a questão religiosa que ameaçou levantar-se durante a sua gerência”(in O Mundo, 17 de Junho de 1912).
Após a demissão do governo, foi aprovado, no dia 16 de Junho, um novo ministério presidido por Duarte Leite. Contudo, sem o apoio dos democráticos e do parlamento, teve uma duração efémera, caindo em 8 de Janeiro de 1913, menos de sete meses após a sua tomada de posse.
É então que se forma o primeiro governo presidido por Afonso Costa, totalmente controlado pelo PRP e que marca o regresso à área governativa de António Macieira, desta vez liderando o Ministério dos Negócios Estrangeiros, tomando posse a 9 de Janeiro.
Ministro dos Negócios Estrangeiros
Respondendo a um deputado que procurava desvalorizar a importância do Ministério dos Estrangeiros, atribuindo-lhe funções diplomáticas meramente representativas, António Macieira explicitava atribuições que entendia como fundamentais para o seu ministério:
“O Ministério dos Estrangeiros exerce funções políticas de alta importância, pois é por ali que correm todos os assuntos que dizem respeito às colónias, quando eles investem carácter internacional.
“Por esse Ministério, são também, tratados os assuntos económicos para a elaboração de tratados de comércio e convenções e, precisamente nesta ocasião, estão entaboladas as negociações para os tratados de comércio com a Inglaterra e a Espanha e para a transformação do modus vivendi com a França em tratados de comércio” (in Diário da Câmara dos Deputados, sessão nº , 23 de Maio de 1913).
Segundo os seus biografos coube-lhe “a honra de gerir os negócios externos quando a República estava ainda (...) num período de iniciação em relação às questões diplomáticas”( in Dr. António Macieira – Notas Biográficas, ed. Imprensa Nacional de Lisboa, 1917 p.9).
De facto o período de cerca de um ano em que exerceu essas funções foi, nessa área, um dos mais produtivos para a República.
As relações com a Inglaterra e com a Espanha mereceram, da sua parte, especial preocupação.
Referindo-se à Inglaterra, numa conferência realizada na Sociedade de Geografia em 24 de Novembro de 1913, António Macieria, destacou as longas e amigáveis negociações que acompanhou “e o fêcho diplomático delas, pela arbitragem, para resolução do conflito respeitante aos bens das extintas congregações religiosas”, anunciando para breve um “tratado de comércio cujas negociações se encontram numa fase final”. Este tratado de comércio encontrava-se, no final do seu mandato ministerial, num estado bastante adiantado.
Em relação à Espanha e nessa mesma conferência, defendeu o respeito mútuo pelas suas instituições : “Nada temos que ver com a forma política da nação vizinha, como ela nada tem que ver com aquela que o povo português adoptou”.
Como prova da demonstração de boa amizade para com o país vizinho, referiu a forma como acompanhou as negociações com o governo de Madrid “para a celebração dum tratado de comércio que substituísse o que caducou”.
Aliás, desde 12 de Outubro de 1911 que se encontrava a representar Portugal o histórico José Relvas, com quem António Macieira manteve uma intensa correspondência diplomática ( ver: MEDINA, João (apresentação e notas), Cartas de José Relvas a António Macieira, ed. Câmara Municipal de Alpiarça, 1981).
Consideram os seus biógrafos que o ministério de António Macieira “deu grande impulso ao tratado de comércio com a Espanha, deixando realizados estudos de decisivo proveito para o reatamento das negociações no momento próprio”(in Dr. António Macieira – Notas Biográficas, ed. Imprensa Nacional de Lisboa, 1917 , p.11).
Outras nações mereceram igualmente as atenções do seu ministério, como a Holanda, a Alemanha e os Estados Unidos da América.
Com os Países Baixos assinou, a 3 de Abril de 1913, a convenção para submeter a uma arbitragem as divergência entre os dois governos em relação à demarcação das fronteiras de Timor.
Quanto às relações com a Alemanha era de opinião que elas eram da maior importância pelo facto de a Alemanha e Portugal serem “vizinhos pelo Este e pelo Oeste do continente negro”, e considerando-as como nações que se orientavam, nas suas relações, pela “amizade e conciliação”.
Com os Estados Unidos assinou, no último dia do seu ministério, em 4 de Fevereiro de 1914, um tratado, que foi o 9º assinado entre os EUA e várias nações, que tinha por objectivo cumprir as aspirações do presidente Wilson de submeter a uma comissão internacional os litígios entre as nações, com vista a evitar a guerra europeia. Embora esta intenção se tivesse malogrado com o desencadear, no final desse ano, da Primeira Guerra, aquele tratado serviu de modelo à criação da Sociedade das Nações.
Houve contudo um caso que ensombrou o seu ministério que foi o das negociações secretas entre a Alemanha e a Inglaterra sobre o destino a dar às colónias portuguesas.
Desde 1912 que o governo inglês vinha realizando encontros secretos com o governo alemão para a elaboração de um tratado que previa a partilha das colónias portuguesas.
Essas negociações eram desconhecidas do governo português, apesar dos insistentes “boatos” (neste caso fundados) que circulavam sobre esse assunto terem obrigado António Macieira a um desmentido oficial sobre o assunto durante uma conferência que realizou na Sociedade de Geografia em 24 de Novembro de 1913.
Desmentia assim aquilo que ela considerava Como “boatos”: o “boato” sobre existência de um tratado entre a Alemanha e a Inglaterra que atingiria a soberania colonial de Portugal; o “boato” de uma suposta conferência de Haia entre aquelas duas nações para negociarem assuntos coloniais que afectassem Portugal, considerando mesmo que “nem o gabinete de Inglaterra, nem o da Alemanha tinham sequer pensado em tal”; o “boato de um acordo daquelas nações sobre esferas de influência onde se previa que a Inglaterra deixava à Alemanha toda a liberdade para a sua acção económica em Angola e à sua participação na construção do caminho de ferro do Lobito ao Katanga, em troca do abandono, por parte da Alemanha, de todos os seus direitos sobre a colónia de Moçambique. Todos estes boatos eram, para António Macieira, “absolutamente destituídos de fundamento”( Conferência na Sociedade de Geografia de Lisboa em 24 de Novembro de 1913, in MACIEIRA, António, Portugal perante as nações estrangeiras, Imprensa Nacional, Lisboa, 1913).
Com tais desmentidos, repetidos no parlamento, revelou-se que António Macieira e o seu ministério foram totalmente ludibriados pela Inglaterra e pela Alemanha, pois nos primeiros meses de 1914, já após o governo presidido por Afonso Costa ter sido afastado do poder, veio a confirmar-se a existência real de tais acordos secretos entre esses dois estados. Só o despoletar da primeira Guerra anulou as decisões desse acordo secreto.
Da queda do Governo à entrada de Portugal na Primeira Guerra
Ao longo do ano de 1913 o governo de Afonso Costa tinha aumentado o número de presos políticos, devido ao movimento de 27 de Abril (chefiado por Machado dos Santos e aliado a elementos sindicalistas) e à intentona monárquica de Outubro. Ainda nesse ano o governo viu crescer a sua influência no parlamento em resultado das eleições parciais para preenchimento de 37 lugares.
Perante tal situação, vários partidos da oposição optaram pelo recurso de manifestações de rua para se oporem ao crescente poder do governo do PRP.
Foi o que aconteceu na noite de 4 de Fevereiro de 1914, quando uma manifestação de apoio ao Presidente da República pelas ruas de Lisboa, acompanhada por archotes acesos e bandas de música, exigiu a queda do ministério e a libertação dos presos políticos.
Lideravam essa manifestação Machado dos Santos, Carlos da Maia e Rocha Martins, entre outros.
Impressionado pela manifestação, o Presidente Manuel de Arriaga chamou os chefes políticos e defendeu uma ampla amnistia, a necessidade de um período de “acalmação” onde os partidos ajustassem uma trégua até às próximas eleições, a revisão cuidada da Lei da Separação e a criação de um ministério extra-partidário.
Perante a atitude do Presidente da República, Afonso Costa viu-se obrigado a demitir-se, formando-se um novo governo de coligação, presidido por Bernardino Machado.
Demitindo-se com o governo, António Macieira manteve contudo uma intensa actividade política no parlamento.
Quando, em 4 de Março de 1915, Pimenta de Castro mandou encerrar o congresso, António Macieira revelou-se um dos deputados mais activos na resistência ao governo ditatorial.
Recusando-se a acatar a ordem do governo, os parlamentares da maioria deslocaram-se para o palácio da Mitra, em Santo António do Tojal.
Aí Afonso Costa apresentou a moção que declarou o Presidente da República, Manual de Arriaga, e o governo presidido por Pimenta de Castro como “fora da Lei”. A moção foi aprovada e nomeou-se uma comissão defensora da Constituição, iniciando-se assim a resistência à ditadura que culminaria com o movimento de 14 de Maio.
Entre os parlamentares presentes nessa reunião estava António Macieira, o terceiro assinar a folha de presenças.
Após restabelecida a ordem republicana, António Macieira foi eleito deputado em 1915 como candidato pelo PRP no Círculo de Torres Vedras e como tal participou activamente na preparação da entrada de Portugal na Primeira Guerra.
António Macieira e a Primeira Guerra Mundial
Apesar de a Guerra ter tido início em Julho de 1914, Portugal só se envolveu no conflito em 1916.
Perante o apresamento de vários navios alemães fundeados em Lisboa, a Alemanha declarou guerra a Portugal no dia 9 de Março de 1916. No dia seguinte reuniu-se o congresso da República declarando guerra à Alemanha e a 15 de Março formou-se o governo da “União Sagrada” com democráticos e evolucionistas e presidido por António José de Almeida que dirigiu os destinos da nação durante tão grave conjuntura.
Em 20 de Março, no parlamento, António Macieira justificou a entrada de Portugal na guerra ao lado dos “aliados”:
“Muito antes da proclamação feita pela forma mais estranha e insólita pela Alemanha, Portugal estava, e desde há muito, ao lado dos aliados.
“O coração de Portugal, acompanhando com entusiasmo, em horas de alegria e também de dor, a acção defensiva dos aliados, sempre estava ao lado dos seus irmãos que se batiam pelo direito e pela civilização!
“(...) os portugueses acompanharam a acção alemã e viram bem quantos e quantos actos de verdadeira barbárie foram praticados (...).
“Portugal não podia nunca estar com a Alemanha do pan germanismo, que não tinha razão alguma para desencadear esta formidável guerra, quer no ponto de vista político, quer no ponto de vista comercial”(in Diário da Câmara dos Deputados, 20 de Março de 1916.)
Nesse mesmo ano é nomeado para presidir à delegação parlamentar portuguesa à Conferência Parlamentar Internacional de Comércio que teve lugar em Paris.
Esta conferência veio na sequência de uma outra que se tinha realizado em Bruxelas em 1914, ainda antes do início da guerra.
Nas palavras do próprio António Macieira, a Conferência de Paris “foi restrita aos países aliados”. Iniciada “no campo da paz, ressurge no campo da guerra para corresponder legitimamente à acção de guerra indispensável, sob o ponto de vista económico, com que é preciso contrariar a política dos impérios centrais”(in Diário da Câmara dos Deputados, 8 de Maio de 1916.
Por ocasião da realização, em Paris, da Conferência Parlamentar Internacional de Comércio, António Macieira teve oportunidade de visitar a cidade de Reims, destruída pela guerra e de se deslocar à Frente. Sobre essa visita deixou-nos um impressionante retrato.
Começou por se deslocar à cidade de Reims, “em passeio acidentado, saltando por cima das ruínas ao mesmo tempo que o canhão troava fazendo lembrar as atrocidades cometidas (...), lembrando-nos os processos de guerra que levam à morte por combustão, asfixia e envenenamento empregados pelos alemães, lembrando-nos enfim de todos os processos actuais de guerra que são a condenação formal duma cultura que se supõe civilização”. Quando se deparou com as ruínas da catedral de Reims, um homem como António Macieira, conotado com o radicalismo anticlerical, não pode deixar de se impressionar com o grau de destruição daquele templo e de associar à dor dos católicos franceses:
“Que recordação mais dolorosa do que a profanação desse templo de arte, abatido ou ferido nos seus rendilhados, nas suas rótulas graciosas, nas suas estátuas de expressões angelicais, nos seus vitrais antigos de cores encantadoramente harmoniosas!(...) os olhos franceses, depois de chorarem a perda dos seus filhos, ainda tiveram lágrimas para chorar a perda da sua catedral”( in Diário da Câmara dos Deputados, 8 de Maio de 1916).
Deslocou-se depois à Frente:
“Arriscámos um pouco as nossas comodidades, arrostámos com as possíveis consequências da nossa curiosidade, mas tivemos a suprema e inesquecível consolação de nos encontrarmos na frente das trincheiras alemãs, como que mostrando-lhes que nós, representantes de Portugal, nos achamos bem irmanados na causa sagrada dos aliados (...).
“Nas trincheiras, bem perto do inimigo, em pequeno e improvisado banquete de confraternização, saudava-se o exército da França e das outras nações aliadas, enquanto ao longe o canhão troava sem cessar e pairava nos ares, ameaçados e imponente a tempestade como que amaldiçoando a tarefe inglória e vã do exército da barbárie”(in Diário da Câmara dos Deputados, 8 de Maio de 1916).
Em Maio de 1917 voltaria a deslocar-se à Europa em guerra, a Paris e a Roma, para presidir à Comissão Parlamentar Internacional de Comércio. Exercia então as funções de Presidente da Câmara doa Deputados, função para a qual havia sido eleito em 15 de Março de 1917 pela maioria esmagadora dos deputados, mas da qual viria a ser afastado ao falhar a tentativa de reeleição em 2 de Dezembro de 1917, sendo nesta ocasião derrotado por Vítor Hugo de Azevedo Coutinho, devido em grande parte a divergências que minavam o interior do próprio PRP.
Terminada a guerra com o armistício de 11 de Novembro de 1918, António Macieira, embora afastado da vida política devido à ditadura de Sidónio Pais, talvez graças à sua experiência como ex-ministro dos negócios estrangeiros e como membro da conferência internacional do comércio, foi nomeado para aquele que foi o seu último cargo político, o de delegado à Conferência inter-parlamentar dos aliados.
Foi a propósito desta nomeação que António Macieira concedeu a última entrevista da sua vida e que mereceu honra de primeira página no jornal “O Século”.
Nessa entrevista começou por justificar a participação portuguesa na guerra, para ele motivada por duas ordens de razões: as de ordem moral e as de ordem material.
Como razões de ordem moral indicava as seguintes:
“ a) Tradições seculares de liberdade individual e nacional.
“ b) Necessidade imperiosa de todos os povos da mesma civilização se ajudarem na consolidação, para sempre, dos princípios d’ela, que presidiram à luta das nações aliadas e que os impérios centrais quiseram aniquilar pelo seu pangermanismo, pela sua cultura supostamente acima de todas as culturas, pelo seu militarismo, pela sua autocracia, a sua plutocracia, o seu feudalismo.
“ c) Necessidade moral que o país sentia de tomar com simplicidade, mas honradamente o seu lugar no concerto das nações aliadas (...).
“ d) Respeito sagrado pelos tratados de aliança com a Inglaterra.
“ e) Necessidade de concorrer, como pequena nação continental, graúda de resto, sob o ponto de vista colonial, para a defesa das pequenas nacionalidades”.
Quanto às razões de ordem material indicava “a defesa da nossa integridade, principalmente como nação colonial” e a “obtenção de vantagens económicas”.
Quando o jornalista lhe perguntou sobre o modo como Portugal se devia pronunciar quanto à aplicação do direito e da justiça, António Macieira respondeu-lhe:
“ a) pelas fórmulas democráticas de respeito pela soberania dos povos e pela defesa das pequenas nacionalidades”;
b) pelo controle dos “processos económicos alemães”, que o entrevistado considerava “engenhosos, terríveis, tão interessantes como de intuitos fraudulentos”.
c) pela procura de “fórmulas de auxílio económico” e “financeiro” para atenuar “a luta económica entre os próprios aliados”.
Defendia ainda “a elaboração de um código regular das relações internacionais” e a “fixação” da “arbitragem como resolução dos conflitos”(in O Século, 26 de Novembro de 1918).
O Acidente Mortal
À data da sua morte, António Macieira residia em Lisboa, num palacete, no nº 30 da Avenida Fontes Pereira de Melo.
Possuía no concelho de Torres Vedras uma propriedade rural, a Quinta do Casal da Folgarosa, na freguesia de Dois Portos.
No dia do seu acidente mortal, 29 de Dezembro de 1918, António Macieira saiu de Lisboa, de automóvel, pelas 9 horas, acompanhado pelo seu criado Manuel Joaquim da Silva, pelo seu primo José Maria Caetano Macieira, que era proprietário da Quinta da Conceição, situada na freguesia de Dois Portos, concelho de Torres Vedras, pelo dono do automóvel, José Marta, por José Augusto Pinto Vaz, guarda-livros da firma Baptista & Macieira, propriedade do seu primo, e por Francisco Ramos, que conduzia o carro e era chaufer de José Macieira.
Chegados a Dois Portos, António Macieira e o seu criado foram deixados na Quinta da Folgarosa, seguindo os restantes para a Quinta da Conceição.
Pelas 16 horas e trinta deu-se o regresso, apanhando-se António Macieira e o seu criado na Quinta da Folgarosa e tomando, na estação ferroviária de Dois Portos, um novo passageiro, Nuno Miguel Peixoto, chefe dos escritórios da firma Baptista & Macieira, conforme o que tinha sido combinado à saída de Lisboa.
Ao todo viajavam no automóvel, de regresso a Lisboa, sete passageiros.
Cerca de uma hora e meia depois deu-se o acidente, entre o Milharado e a Póvoa da Galega, no limite do concelho de Loures, perto do Cabeço de Montachique .
O carro derrapou numa curva e chocou com uma árvore, cuspindo todos os seus ocupantes, alguns dos quais ficaram bastante feridos.
Os feridos foram acudidos por um lavrador, Manuel Custódio, proprietário do Casal do Pedregulho, e pelos seus familiares, que os transportaram para sua casa.
Aí confirmou-se o óbito de António Macieira, com traumatismo craniano.
Posteriormente os feridos acabaram por ser assistidos no Hospital de S. José e o corpo de António Macieira seguiu para sua casa onde ficou depositado em câmara ardente até ao funeral que se realizou no dia seguinte( in O Século, 30 de Dezembro de 1918 e Diário de Notícias, 30 de Dezembro de 1918).
Conclusão
À data da sua morte António Macieira estava afastado da vida política, embora permanecesse fiel ao Partido Democrático.
Sabe-se que frequentava assiduamente, desde a sua fundação em 1 de Março de 1917, a redacção do jornal “A Manhã”, dirigido por Meyer Garção, jornal classificado por Oliveira Marques como porta-voz da ala direita do PRP ( MARQUES, A . H. de Oliveira, Guia de História da 1ª República Portuguesa, Imprensa Universitário, ed. Estampa, Lx. 1981, p. 26).
Esta situação parece revelar um António Macieira, nos seus últimos anos de vida, menos radical e mais moderado que o António Macieira dos primeiros tempos.
A moderação das suas posições políticas recentes parece ser igualmente comprovada pelo facto de não ter desdenhado aceitar um cargo da importância como o de delegado às conferências aliadas, em representação de Portugal, em pleno período sidonista, podendo não ser igualmente estranha a esta situação a sua ligação familiar a Egas Moniz, então Ministro dos Negócios Estrangeiros.
O seu último acto político é, aliás, revelador dessa moderação.
Tratou-se de uma carta, datada de 22 de Dezembro de 1918, enviada ao recém empossado presidente Canto e Castro, que substituíra, em 16 de Dezembro, o recém assassinado Sidónio Pais [em 14 de Dezembro].
Nessa carta, divulgada publicamente após o seu falecimento, António Macieira respondia ao apelo de Canto e Castro para que todos os portugueses se unissem na defesa da nacionalidade:
“Falo como sempre tenho falado, sem nenhuma espécie de escravização política, e tanto mais desembaraçado quanto é certo que bem pode acontecer que este seja o último acto da minha vida de homem público (...) último acto talvez da minha vida de homem público, porque se verifico que em nada posso concorrer para o bem do meu País só me cumpre abandonar por completo a política.
“Vejo que o governo tem o propósito firme de não sancionar a violência e antes pretende, em regime de liberdade, a pacificação da família portuguesa, e que, apelando para todos os cidadãos, não repele as boas intenções, sequer, dos mais humildes.
“ (...) É de paz, é de ordem a obra a fazer, acabando-se com perturbações de modo que a Nação e a República possam dignificar-se aos seus próprios olhos e aos olhos do estrangeiro.
“ (...)Reprovando, portanto, em absoluto, o atentado de que foi vítima o sr. Dr. Sidónio Pais, sinceramente comovido por tudo quanto de violento se tem passado no nosso país, lembrando-me que, contra o que era de esperar, se não tem realizado entre nós, até agora o voto de Thiers quando disse que “a República é o governo que menos nos divide”, mas convencido de que o apaziguamento das paixões por acção pacífica do poder há-de conseguir a nossa adaptação: àquela fórmula eu serei muito feliz se puder concorrer para a realização dessa obra, sem quebrar dos princípios que sempre proclamei.
“De certo V. Ex.ª me faz a justiça de acreditar que me não move nenhuma espécie de mesquinha ambição política: da República já recebi as honras máximas a que poderia julgar-me com direito.
“Se V. Ex.ª entende, pois, que em mim existe algum préstimo, no sentido exposto, pode contar com ele Sinceramente”(in A Manhã, 1 de Janeiro de 1919).
Com 43 anos, desaparecia assim um dos republicanos mais sinceros da primeira República, controverso e polémico e de quem ainda muito havia que esperar.
Ao morrer tão cedo o seu nome caiu quase no esquecimento, ou, quanto muito, tem sido apenas recordado pela sua feição anticlerical dos primeiros tempos.
Espero com esta comunicação ter contribuído para despertar a curiosidade entre o auditório para estudar e investigar, de forma mais conseguida que a minha, sobre a vida, a obra e o pensamento político de António Macieira.
1 comentário:
... e contudo, a 1.ª república é uma negra página da nossa História, onde reinou a morte e a miséria. È lá que se encontram os pais dos governantes que agora puseram Portugal na pocilga, um PIG!
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