25
de Abril - Regresso ao Futuro
Por
Venerando Aspra de Matos
“TORRES
VEDRAS: 15000 habitantes na vila e 60 000 no concelho (...) 412 km de rede de
comunicações; 68 000 000 de litros de produção vinícola, 10 000 000 kg de
trigo, 14 000 000 kg de batata; um comércio poderoso e uma indústria em
desenvolvimento; [a Casa Hipólito empregava então 1028 pessoas] 4000 alunos
diariamente nas escolas da vila”(1).
Estes
alguns dos índices que caracterizavam a então vila de Torres Vedras em 1973,
uma comunidade a quem faltava «o golpe de asa que torna perenes ou inesquecíveis
as iniciativas. Aquele tipo de vontade colectiva que ergueu uma Colónia Balnear
Infantil, uma Física, um Cineclube e que, ainda hoje, realiza um Carnaval. O
que acontece para lá da rotina é fruto de vontades isoladas e surge como
sucesso do acaso. A carcaça está vazia de humanismo e de interioridade. Onde
está o rasgo, a lucidez, a alegria, a juventude que transforma as pequenas
coisas oferecendo-lhe um significado social duradoiro? Onde está o futuro e que
futuro?” interrogava-se o articulista, António Augusto Sales, sobre Torres
Vedras, uma terra para quem «até os jovens abdicam à nascença” (2).
No
início de 1974, eram mais ás duvidas que as certezas, perante a evidente derrocada
da chamada primavera marcelista, o arrastar, sem soluções, da guerra
ultramarina, e o ainda quente e frustrante processo eleitoral de 1973.
Num
ano marcado pela crise económica, evidente nas restrições impostas ao uso da
gasolina e no seu aumento de preço, notava-se um crescente mal-estar na sociedade
portuguesa. Nem a censura conseguia disfarçar a falência do regime.
O
debate sobre o IV Plano de Fomento, para vigorar de 1974 a 1979, permitia alguma
intervenção crítica que deixava passar algum descontentamento sobre a realidade
torriense.
O Dr. Afonso de Moura Guedes, num artigo intitulado
“Torres Vedras - o desenvolvimento que não se fez” (3),
interrogava-se porque razão tinha sido o desenvolvimento de Torres Vedras
marginalizado naquele Plano, e concluía:
“Administrar, aos tempos que correm,
exige largueza de perspectivas, imaginação, capacidade criadora, ia a dizer
audácia.
“(…)
“Em relação ao nosso meio local, creio
que, tudo isso, teria exigido a realização prioritária de três políticas
globais: uma política urbanística e de solos; uma politica rodoviária; uma
política industrial.
“Uma politica urbanística e de solos que,
corajosamente, pusesse cobro ao que há de sufocante e de caótico no
desordenado crescimento da vila e a essa vergonhosa especulação de terrenos,
que aqui ocorre, sacrificando toda a população ao
proveito de muito poucos.
“Uma
política rodoviária que estabelecendo toda uma rede efectiva de ligações, no
espaço inter-regional, permitisse uma cómoda e rápida circulação interna, de
pessoas e de mercadorias, assegurando, deste modo, a Torres Vedras, a posição,
a que tem direito, de pólo de desenvolvimento do Oeste.
“Uma
política industrial que, começando por definir uma zona industrial, soubesse
ordenar, depois, toda a estratégia conjugada de acções, susceptíveis de criarem
condições favoráveis à implantação de novas indústrias, no nosso meio.
“(…)
“Pois
foi isso tudo o que não se fez, conto reflecte o Plano de Fomento. O
desenvolvimento que não se fez. Que não se soube construir como projecto de
futuro. O comboio que mais uma vez se perdeu”
As
animadas sessões do CDE da campanha eleitoral de 1973 foram, para muitos então
jovens como eu, o primeiro contacto com a realidade política desse tempo. Foi
essa a primeira vez na minha vida que encarei com a polícia de choque em Torres
Vedras. Esse encontro com a polícia de choque repetir-se-ia a 20 de Janeiro de
1974, frente ao cemitério de S. João, quando da romagem à campa do
antifascista, natural de Paul, Fernando Vicente. Surpreendentemente o convite
para que o povo de Torres Vedras participasse nessa Homenagem seria publicada
nas páginas do jornal «Badaladas»:
“Ali, entre ciprestes, pelas 11 horas do
dia 20 de Janeiro, num minuto de recolhimento, a vida não parecerá aquele
vazio do quotidiano, sem ideais, apenas virada para a materialidade da
exixtência.
“Fernando Vicente merece a simples
homenagem póstuma que lhe vai ser tributada» (4).
Foram alguns os torrienses com coragem
para comparecer, mesmo assim menos que os “pides” e polícias de choque, aí
também presentes, mas por “razões” diferentes.
Também as escolas secundárias do concelho
conheciam pela primeira vez alguma agitação política através da distribuição clandestina
de propaganda política, motivando interrogatórios a alunos e professores «suspeitos»
e a intervenção de elementos da PIDE na vida escolar. Terá mesmo sido elaborada
uma lista para efectuar prisões a 1 de Maio, o que só não aconteceu graças ao
25 de Abril.
Algumas
colectividades locais conheciam igualmente alguma animação político- cultural.
Tais foram os casos do Cineclube e do CAC.
Na
noite de 24 de Abril, muitos de nós fomos para casa tardiamente, depois de assistirmos
a mais uma sessão do cineclube no Teatro-Cine, o filme de Jerry Lewis “O morto
era outro”, longe de imaginarmos o que se preparava para essa madrugada.
Fui
acordado pelo meu pai às 8.30 horas da manhã de 25 de Abril, eufórico com as
primeiras notícias do dia. Durante todo o dia foi um rodopio entre a escola,
entretanto encerrada, a casa de amigos e a minha casa, ocupando algum tempo a
gravar os comunicados militares da rádio. A televisão só iniciaria a sua
emissão pelas sete horas da tarde. À noite realizou-se um primeiro comício no
Largo da Graça, onde ainda se manifestava algum receio sobre o desfecho do
movimento militar.
“Quando olho o longo caminho percorrido
cheio de ásperos reveses, perseguições e mediocridades; quando, subindo ali ao Forte, te contemplo crescendo em todos os
sentidos caoticamente envolta pelo desprezado Sizandro; quando imagino
o que és e o que poderias ter sido, eu me entristeço, Torres Vedras.
“Vila
verde, pintada a esperança pelos vinhedos, doirada pelo recorte impar das tuas
penedias bravias em Santa Cruz; retalhada impiedosamente pelos crimes do mau
urbanismo imposto por certos conhecidos pimpões ultramontanos, quase te
desconheço Torres Vedras.
“Vila
calada e cansada por anos de paz podre, das divisões estéreis às mesas dos
cafés, onde raramente qualquer pedra agitava a calma estagnação dos teus sonhos
adormecidos, pálida vila estremenha onde através da inoperância dum arranjismo
organizado ias crescendo angustiada sob um colete-de-forças tecido de mentiras,
ameaças e subornos, Torres Vedras.
“Hoje
é livre”. (Venerando Ferreira de Matos — “Torres Vedras e o Futuro” in
BADALADAS de 4-5-74).
Na
tarde de 26 de Abril as ruas de Torres Vedras eram percorridas por uma grande
manifestação popular de aclamação e apoio ao movimento militar.
“Em
26 de Abril quando ali na Avenida 5 de Outubro o Povo bom e simples de Torres
Vedras dava largas à sua alegria,
verificou- se a sua maturidade, devoção e patriotismo.
“Maturidade que sempre foi negada por
aqueles que nem sempre serviram com dignidade os seus postos.
“Antes
pelo contrário, deles se servindo para os seus interesses pessoais” (5).
A 28 de Abril, na sala do CAC, reunia-se a
Comissão Concelhia da CDE, iniciando-se aí a transferência do poder concelhio
para as forças democráticas, da qual sairia uma primeira comissão para
preparar essa mudança política e um manifesto ao povo de Tones Vedras, onde
eram abordadas algumas das situações mais gravosas para o concelho, herdadas do regime deposto:
“Os graves problemas sempre adiados e
jamais resolvidos, como os da electrificação, distribuição de água
canalizada, abertura de caminhos e estradas nas aldeias e aglomerados do
Concelho, ou de um plano de urbanização jamais posto em execução, jamais
cumprido, com relevância para o tráfico de imóveis feito por uns tantos que
sempre se serviram das Câmaras Municipais no seu directo interesse pessoal, o
acumular de desonestas riquezas pela valorização artificial de terrenos (por
exemplo os de Santa Cruz), pelas «prioridades» dadas ao asfaltamento de
estradas e ruas onde os apaniguados do regime
tinham as suas moradias e interesses particulares em detrimento dos interesses
colectivos; (...) a poluição do Sizandro lesiva do interesse das populações,
com relevância para as de Runa, em que certas empresas particulares têm graves
responsabilidades de conivência com organismos “ainda” oficiais;(...)”(6).
A transferência do poder concelhio não foi
isenta de conflitos e situações caricatas.
Logo a 29 de Abril, o executivo camarário
ainda em funções reunia-se e aprovava, numa manobra de puro oportunismo
político, uma moção de adesão ao programa da Junta de Salvação Nacional,
atitude logo aí denunciada por vários torrienses que assistiam a tão caricata
reunião. Aquela Câmara reuniria pela última vez a 13 de Maio, continuando a
deliberar como se o mundo à sua volta tivesse parado, talvez ainda esperançada
no resultao da operação de branqueamento tentada por alguns dos seus membros,
num conjunto de artigos publicados nas páginas do “Badaladas”, tentativa
desde logo desmascarada por vários democratas de sempre, de entre os quais António
Augusto Sales:
“Quem na devida altura não teve, pelo
menos, a coragem de dizer NÃO, perdeu a oportunidade. Isto é, quem, na
ex-vereação não teve a coragem de se demitir depois de verificar a impossibilidade
de fazer um trabalho equilibrado perdeu a oportunidade de se descomprometer
com as irregularidades e arbitrariedades (...) É preciso que todos nos
convençamos que Portugal mudou mesmo. É preciso que não nos deixemos iludir
com histórias da carochinha. Durante quarenta e oito anos muita gente passou
fome porque não quis colaborar; muita gente perdeu
anos de vida nas cadeias porque não quis colaborar; muita gente viveu uma
existência de sobressalto porque não quis colaborar; muita gente perdeu
empregos, família, glórias, dinheiro, comodidade, sossego e liberdade apenas
porque se negou a colaborar. Hoje, no segundo mês da libertação, não podemos
permitir que sejam confundidos estes com os outros. Seria criminoso.” (7).
Num plenário popular realizado a 1 de
Maio no campo de jogos do Sport Clube União Torreense, foi eleita uma comissão
para gerir a Câmara, constituída por 18 pessoas. Dois dias depois essa comissão
reuniria com o capitão Vítor Manuel Ribeiro, delegado da Junta de Salvação
Nacional. Por sugestão deste, aquela comissão foi reduzida para 9 elementos
que ficaram a constituir o elenco da Comissão Administrativa Municipal, sendo
eleito para a presidir Francisco Manuel Fernandes, coadjuvado por António Leal
d’Ascensão, João Carlos, José do Nascimento Veloso, Duarte Nuno Pinto, Manuel
Carlos Penetra, José Sérgio Júnior, Marcos Santos Bernardes e Carlos Augusto
Bernardes. Esta comissão administrativa tomaria posse do seu cargo a 15 de
Maio no Governo Civil de Lisboa e reuniria oficialmente pela primeira vez a 20
de Maio.
“Depois da euforia dos cravos vermelhos,
de reuniões contínuas e esclarecedoras, urge que se faça o ponto da situação. O
trabalho espera-nos. Vamos a ele!
“(…).
“À inflação da palavra terá
de suceder o estudo dos problemas e a respectiva solução às realidades que nos
cercam.
“Longas milhas começam com o primeiro
passo — diz um ditado chinês.
“Pois os primeiros passos estão a ser
dados com firmeza e as longas milhas serão vencidas através do Tempo, sem o
qual nada de duradoiro se pode fazer.” (8).
Os dados do futuro, estavam lançados!
NOTAS:
(1) SALES, António Augusto — “Das muitas é
variadas leituras que alguns acontecimentos de 1973 podem oferecer (...)”, In
BADALADAS de 16 de Março de 1974.
(2)
Idem, idem.
(3) MOURA GUEDES, Dr. Afonso de — “Torres
Vedras — o desenvolvimento que não se fez”, in BADALADAS de 26 de
Janeiro de 1974.
(4)
“Romagem à campa de Fernando Vicente-Convite”,
in BADALADAS de 19 de Janeiro de 1974.
(5) MATOS, Venerando Ferreira de — “Torres
Vedras e o Futuro», in BADALADAS de 4 de Maio de 1974.
(7) SALES, António Augusto— “Saber com quem
estivemos para saber com quem estamos”, in BADALADAS de 29 de Junho de
1974.
(8)
MATOS, Venerando Ferreira de — “Nortadas”,
in BADALADAS de 27 de Julho de 1974.
(este texto foi publicado no semanário Frente
Oeste, em 21 de Abril de 1994).
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