quinta-feira, 30 de maio de 2019

Há 430 anos, em 1589 - D. António Prior do Crato na Região de Torres Vedras


(D. António, Prior do Crato)


Em 29 de Maio de 1589, um exército anglo-luso, onde se encontrava D. António Prior do Crato, entrava em Torres Vedras, dirigindo-se a caminho de Lisboa, com o objectivo de restaurar o trono português.

A História deste episódio está bem documentada num manuscrito da autoria de André Falcão de Resende, existente na Torre do Tombo.

O conhecido poeta quinhentista tinha sido “juiz de fora” em Torres Vedras desde finais de 1576, onde estabeleceu amizade com o alcaide D. Martinho Soares de Alarcão, já não exercendo esse cargo, pelo menos desde o início de 1586.

Antes, em 18 de Abril de 1589, saiu de Plymouth, na Inglaterra, uma armada, a bordo da qual seguia D. António Prior do Crato com a sua “corte”, com o objectivo de conquistar o reino de Portugal.

Era uma armada de “cento e setenta navios grandes e pequenos”, com “perto de vinte mil homens”, ingleses, escoceses, “gente  vadia  de França” e da Flandres, alguns espanhóis “portugueses e castelhanos”, isto é, composta por mercenários.

A armada era comandada pelo “General do mar”, Francis Drake,  acompanhado pelo “General de terra” Henrique Norris,”capitão escocês muito conhecido”, conde de Norwich.

Atacando, sem êxito,  a Corunha, na Galiza, dirigiu-se então para território português.

Tomando-se conhecimento da sua aproximação, entre Lisboa e Cascais foram tomadas várias medidas para a defender a capital de um desembarque e ataque dos ingleses, apesar de os armazéns da cidade estarem “muito faltos de armas e de munições, por se gastar muito na armada do ano passado” (refere-se ao desgaste da armada portuguesa, motivada pela derrota luso-castelhana da Armada Invencível, cerca de um ano antes).

No dia 23 de Maio de 1589, uma sexta-feira , a Armada Inglesa chegou a Peniche, entrando no porto da vila, que tomou, e a praia em frente, a praia de Nª Senhora da Consolação.

As tropas estacionadas para defender o local e a fortificação, perante a dimensão da armada, fugiram ou renderam-se de imediato.

A facilidade com que os ingleses entraram em Peniche, está na origem do dito popular dos “amigos de Peniche”.

O alcaide local, João Gonçalves de Ataíde , de imediato mandou enviar recado a “Sua Alteza” e ao alcaide-mor de Torres Vedras, Dom Martinho Soares de Alarcão e Melo, acerca do sucedido.

Em Torres Vedras estavam  estacionadas  12 “companhias” comandadas por Martinho Soares, que logo na noite desse dia partiu com elas na direcção de Peniche, acompanhado por  Gaspar de Alarcão, morador nesta vila, com cento e dez “ginetes” de que era capitão.

Este Gaspar Ruiz de Alarcão tinha vindo para Portugal em 1587, com quatro companhias a cavalo, para apoiar o Vice-rei, Cardeal D. Alberto.

Do Turcifal saiu Pero Correia, filho de Lourenço Correia, com três “homens seus” a cavalo, e quatro a pé com “espingardas” e outra gente a pé, para se juntar ao alcaide de Torres.

No Sábado seguinte, dia 24, Dom Martinho Soares juntou-se  às tropas comandadas por Pedro de Gusmão, num local a meia légua de Peniche, “sobre hum alto que chamão o Coymbram”, avistando daí os inimigos.

Sobre estes “discorreram” os “Ginetes de Gaspar de Alarcon”, fazendo prisioneiro um soldado do exército inglês que tinha sido ferido, e que disse ser francês, tendo por missão entregar uma mensagem de D. António para “hu Mosteiro de frades ahy vezinhos” , revelando o número de tropas inglesas, 20 mil “infantes”, e informando que já tinham desembarcado em Peniche seiscentos cavalos.

Impressionados com esses números, os “nossos” “aballarão dalli para outro lugar mais alto, e mais afastado do inimigo”, enquanto que “os de Torres Vedras e seu termo que erão todos até trezentos, os mais delles gente rústica”, fugiram para Torres Vedras, as tropas de Dom Martinho e de João Gonçalves de Atayde.

No dia seguinte, Domingo vinte e oito de Maio, juntaram-se a estes, em Torres Vedras, onde já estavam Pedro de Gusmão e Gaspar de Alarcão, duas companhias de “arcabuzeiros a cavalo” comandadas por D. Sancho Bravo (ou Branco) e outras duas de “infantaria do terço”, comandadas por Dom Francisco de Toledo, alojando-se “esta gente toda” no Castelo de Torres Vedras, que consideravam “forte e defençável, principalmente vindo o I[n]imigo sem artilharia e com poucos cavallos”.

Contudo, dando-se rebate, por volta da meia noite, que os inimigos vinham marchando da Lourinhã para esta vila, que distava duas léguas, “partirão todos logo com muita pressa” para Enxara dos Cavaleiros, ficando apenas Gaspar de Alarcan, como os seus “ginetes”, “sempre” à vista do inimigo.


(Percurso das tropas luso-inglesas, de Peniche a Cascais (Fonte-João Pedro Vaz, ob. cit.)

Na segunda-feira, vinte e nove de Maio, pela manhã “entrou em Torres Vedras hum clérigo que era cura no lugar do Vimieiro [será Vimeiro ?], notificando aos que estavão na villa que se não fossem della, por que lhes não farão mal, prometendo lhes disto seguranças, por parte de Dom António”.

Tomando conhecimento dessa situação, os ginetes de Gaspar de Alarcão avançaram para Torres Vedras, com o objectivo de prenderem esse clérigo.

Com esse pretexto entraram “em muitas casa da villa e termo”, provocando a fuga dos seus habitantes para lugares altos.

Os abusos cometidos por algumas tropas de Gaspar de Alarcão e “outros soldados” castelhanos, provocaram o rumor segundo o qual os ginetes andavam a roubar e a matar, “e disto lançarão fama e causando com isto grande inquietação por esta comarca” de Torres Vedras, “e por  outras temendo se e escondendo se  a gente miúda e molheres, por montes e covas”, embora o narrador refira que os capitães e nobres não foram responsáveis por esses excessos.

Espalhando-se pela região a notícia dos saques, roubos e assassinatos feitos pelas topas luso-castelhanas, a população temia mais “destes nossos amigos e naturaes que dos Ingleses”, até porque estes, até então, não roubavam nem saqueavam, pelo que começaram a ter apoio popular, dando mantimentos e juntando-se às tropas anglo-lusas de Norris e D. António.

Nessa segunda-feira “já tarde”, entraram na vila de Torres Vedras o exército inglês e D. António, sob o comando de Norris, “onde alguns poucos e falhos de força e conselho o esperarão, não seguindo a muitos outros que o não quiserão esperar e se ausentarão”, isto é, a vila estava quase desabitada.

D. António aposentou-se nas casas do prior de Stª Maria do Castelo, “e a noite foy dormir no Castello, onde pousava Francisco de Seixas” Cabreira, natural da vila, que veio a ser preso mais tarde pelo governo filipino, por causa desta sua atitude de facilitar a aposentação de D. António em Torres Vedras.

“Sem mantimentos, e com tanta fome”, as tropas inglesas “comerão muitas imundices”, isto porque tinham ordens para não proceder a qualquer saque.

Contudo, muitos desses soldados “se embebedarão, por aver muito vinho nesta villa”. Beberam em tal excesso que muitos adoeceram e alguns chegaram mesmo a morrer.

Este incidente provocou um atraso no avanço dos Ingleses sobre Lisboa, dando tempo às tropas luso-castelhanas que defendiam a capital de se prepararem para a chegada dos apoiantes de D. António.

Só na quarta-feira seguinte, dia 30 de Maio, é que as tropas inglesas retomaram a sua marcha sobre Lisboa, avançando por Enxara dos Cavaleiros até Frielas.

Tendo chegado a informação aos castelhanos que as tropas inglesas estavam “tomadas” de vinho, avançaram sobre o acampamento inglês onde deram conta que, afinal, “estavão mais expertos do que cuidaram e bem entricheirados”, retirando-se para Lisboa com algumas baixas em confrontos esporádicos com os ingleses.

Entretanto, André Falcão de Resende, que, quando da tomada do Castelo por D. António, tinha escondido alguns livros numa casa a meia légua de Torres Vedras, voltou à vila assim que os ingleses se retiraram para avançarem sobre Lisboa.

Entrando em Torres Vedras, encontrou-a praticamente deserta, descobrindo, junto ao “pelourinho  da praça” uma carta, assinada por D. António, na qual com “graves penas e ameaças, assumindo-se nella como Rei, mandava que todos o fossem logo servir e acompanhar, dentro de vinte e quatro horas”.

A título de curiosidade, refira-se que esta é uma das mais antigas referências coevas ao Pelourinho quinhentista de Torres Vedras.

Dirigindo-se depois para um ponto alto perto da vila, Falcão de Resende avistou a marcha do inimigo, contando cerca de “doze mil homens, e sessenta cavallos somente”, sem artilharia, sem mantimentos e sem bagagens. De imediato enviou esta informação ao seu filho, Luís Falcão, que estava em Lisboa, para conhecimento dos defensores desta cidade.

No dia 1 de Junho, 5ª feira, o “inimigo” avançou sobre Lisboa até Alvalade “mea legoa” de Lisboa.

Eram as tropas inglesas abastecidas por Gaspar Campello, que tinha negociado com D. António a entrega de mantimentos às tropas luso-inglesas. Gaspar Campello tinha sido juiz em Torres Vedras e era “muito conhecido nesta comarca” e tinha forçado “a gente fraca, com nome de Almotacel moor para trazerem mantimentos aos Ingleses”.

A cavalaria luso-castelhano conseguiu, contudo, fazer “presas” desses mantimentos.

Durante este tempo ocorreram escaramuças esporádicas entre os dois exércitos.

No dia seguinte, sexta-feira 2 de Junho, os ingleses marcharam de Alvalade até “perto da cidade” entrando pelos arrabaldes e pelas ruas e travessas.

Do Castelo e das Galés estacionadas no Tejo receberam os ingleses muito fogo.

No dia seguinte os sitiados conseguiram receber mantimentos e vários reforços.

Os ingleses, perante a resistência dos sitiados, resolveram, no Domingo 4 de Junho, retirar-se a caminho de Cascais., onde chegaram no dia seguinte, perseguidos pelas tropas luso-castelhanas, entre elas os “ginetes” de Gaspar Alarcão que prenderam e mataram muitos dos soldados luso-ingleses.

De sitiantes, os ingleses passaram, em Cascais, a sitiados.

Em 18 de Junho iniciaram a sua retirada, embarcando na armada inglesa.

Entretanto, no dia 6 de Junho, cerca de mil homens comandados por D. Martim Soares e pelo capitão António Pereira, reconquistaram, quase sem combate, o castelo de Torres Vedras.

Algumas fontes referem uma segunda tentativa das forças do Prior do Crato de conquistarem o Castelo, sem o êxito da primeira vez.

A ter acontecido, terá ocorrido entre essa data de 6 de Junho e o início da retirada inglesa do território português, que ocorreu entre 18 e 22 de Junho.

Segundo Vieira da Mota, deve-se a este episódio o facto de D. António apelidar esta localidade de “Torres Traidora”.

O mesmo Martim Soares, em 22 de Junho, marchou sobre Peniche, levando consigo “30 de cavallo”, com “gente de pé”. Chegado à Lourinhã, foi informado por uma espia que os inimigos estavam a embarcar em Peniche, levando consigo a artilharia da fortaleza, pelo que apressou o seu avanço sobre aquela vila, de onde grande parte dos ingleses já se tinham retirado.

Em definitivo, a região voltou a obedecer a D. Filipe II.

Retirando-se definitivamente de Portugal, D. António, faleceu na miséria em Paris em Agosto de 1595.

FONTE PRINCIPAL:
(Parte do Documento de André Falcão de Resende que refere a chegada de D. António a Torres Vedras).

FALCÃO de RESENDE, André, “Carta que o autor escreveo a hum Amigo em que se conta a vinda dos Ingleses a Lisboa com dom António Prior do Crato no Ano de mil quinhentos e oytente e nove annos”, in Manuscrito da Livraria, cota 1147,   Arquivo Nacional da Torres do Tombo.

PARA SABER MAIS (outras fontes consultadas):

AZEVEDO, Maria Antonieta Soares de, “D. Martinho Soares de Alarcão, alcaide-mor de Torres Vedras e avô do Padre Francisco Soares”, in Arquivo do Centro Cultural Calouste Gulbenkian, vol.I,  Paris 1969, pp. 470-486.
BRAGA, Paulo Drumond, Torres Vedras no reinado de Filipe II, Câmara Municipal de Torres Vedras, Edições Colibri, Lisboa 2009.
MOTA, A. Vieira da Mota, “Memórias de Torres Vedras”, Capítulo IX,  in O Torrense, nº 52, 17 de Setembro de 1922.
RAMALHO, Américo da Costa, O Essencial sobre André Falcão de Resende, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1988.
RÊGO, Rogério de Figueirôa , “O Castelo de Torres Vedras”, in Boletim da Junta da Província da Estremadura, nº 21, Série II, Maio/Agosto de 1949, pp. 195-209.
SERRÃO, Joaquim Veríssimo, O tempo dos Filipes em Portugal e no Brasil, ed. Colibri, Lisboa 2004.
VAZ, João Pedro, Campanhas do Prior do Crato – 1580-1589 – Entre Reis e Corsários pelo Trono de Portugal, ed Tribuna, sem data [séc. XXI].

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