quinta-feira, 11 de julho de 2024

A “Guerra do Bacêlo” (A-Dos-Cunhados - 1935)

(Gravura alusiva à referida revolta . Fonte - Povo Jovem- Janeiro 1975)

A “Guerra do Bacêlo” foi uma revolta popular, que aconteceu em 1935, com principal foco na freguesia de A-Dos-Cunhados (1).

Essa revolta popular foi provocada pelo Decreto Lei nº 24 976 de 1935, que proibia a plantação de vinhas novas, obrigando a que, até 30 de Março de 1936, se efectuasse o arranque das existentes, medida que se enquadrava na chamada “campanha do trigo” do Estado Novo, a qual, segundo os que estudaram essa medida, redundou num enorme fracasso social, económico e ambiental.

Essa revolta foi uma das mais importantes revoltas populares de camponeses na região, uma das primeiras contra o Estado Novo, a primeira luta social do concelho de Torres Vedras referida pelo jornal “Avante”, na sua edição clandestina de Maio de 1935.

Uma força de trinta praças da GNR, com elementos locais, das Caldas da Rainha e de Peniche, tinha-se concentrado em Tores Vedras no dia 7 de Abril de 1935, para acompanharem os agrónomos das “brigadas das vinhas” que íam fazer o levantamento das vinhas ilegalmente plantadas em várias freguesias do concelho, para serem arrancadas posteriormente.

No dia 8 de Abril de 1935, essa força da GNR saiu de Torres Vedras a caminho de A-Dos-Cunhados, por onde se tinha decidido iniciar a ronda pelo concelho, com o objectivo da “manutenção da ordem pública durante os trabalhos da brigada dos vinhos” (2).

Nessa localidade tiveram de enfrentar a ira dos populares, que se opunham ao arranque das vinhas, para muitos o único ganha-pão num tempo de grandes dificuldades económicas.

Ao aproximarem-se daquela localidade, foram ouvidos alguns “morteiros”, lançados pelos populares para avisarem da aproximação daquela força (3).

Os populares, oriundos de “Cunhados, Sobreiro Curvo, Bombardeira, Palhagueiras, Casais, etc.”(4), avisados antecipadamente da deslocação, vinda de Torres Vedras, dessa força da GNR, já se tinham juntado no Largo da Cruz e lançado foguetes de aviso e repicado os sinos.

Entrando la localidade, por volta das 11 horas da manhã, a GNR ocupou o largo principal,  ao mesmo tempo que se destacava “um esquadra para ocupar as imediações da Egreja a fim de evitar que o sino tocasse a rebate, como é costume no concelho de Torres Vedras, e ainda “ proteger o flanco esquerdo do local onde se encontrava o comandante dessa força, “visto que o direito estava apoiado numa edificação e a rectaguarda protegida por outra edificação”.

Também as mulheres que se juntaram aos homens na manifestação, incitaram com gritos “a bradar que “que tinham fome”, que ninguém lhes dava trabalho, “que nunca consentiriam no arranque de uma única cepa” (5).

Aos gritos, os rurais que aí se tinham concentrado, “começaram o ataque à força” da GNR, a quem arremessaram pedras, usando “forquilhas, enxadas, varapaus, machados, pás e rodas de forno, entre outras”, mas sem armas de fogo(6), para enfrentaram as autoridades, estas bem armadas, repelem o ataque “pelo fogo”(7) e à coronhada, redundando o confronto em vários feridos entre os populares e os guardas.

“Guardas mandam tiros para o ar com o fim de assustar o povo que começa já a aparecer em grande número. Alguns fogem. Os que ficam estão sob o seu olhar e armas (…). Eis que aparece o Sr. José Ferreira do Sobreiro Curvo, já de idade avançada que grita para os guardas: “Ah, seus sacanas, com que então querem arrancar o bacelo?!!!...Levanta ameaçadoramente a enxada que traz consigo, na direcção dos mesmos e…Este  acto tem a força de uma forte ventania ao passar por uma fogueira prestes a extinguir-se. Ateiam-se as brasas de uma guerra entre G.N.R e povo” (8).

Os confrontos estenderam-se à localidade vizinha do Sobreiro Curvo, pois as “mulheres do Sobreiro Curvo apetrechadas dos seu armamento”, rodos e pás de forno, “escondem-se debaixo da ponte mais próxima da igreja. Atravessam a rigueira para o lado de A-Dos-Cunhados e passam para a confusão (…).Instalam-se alguns guardas na estrada em frente do átrio da igreja não deixando passar quem quer que seja vindo do S. Curvo”, mas muitos ainda conseguiram passar.

Entre as mulheres envolvidas nos confrontos contra os guardas destacou-se uma tal “Victória Ferrador”, “a quem o povo chamou “ a padeira de Aljubarrota”, mulher de “grande relevo”, que, no confronto, salvou “um homem indefeso de apanhar tareia, onde intervêm seis guardas. Com um rodo de forno põe todos em debandada”(9).

Do confronto resultaram feridos 35 “rurais”, “mais ou menos gravemente”, e um soldado da GNR “ferido na cabeça por uma enxada” (10).

A maior parte dos feridos populares desse confronto foram conduzidos para os hospitais da Lourinhã e de Torres Vedras. Neste último, os “18 ou 20” que recorreram aos serviços hospitalares desta vila, foram presos pela GNR, enviados para a cadeia do posto local desse guarda. Alguns dos feridos foram enviados para o hospital de S. José.

Imposta a “ordem”, no dia 9 efectuou-se o levantamento das vinhas ilegais naquela freguesia, para se proceder ao seu arranque.

Para os dias seguintes foi programado o mesmo trabalho para outras freguesias do concelho, chegando a informação ao comandante da força da GNR que estava em Torres Vedras que “os rurais de Aldeia Grande, Maxial e Ermigeira, armados, marchavam sobre Torres Vedras”, pelo que foram colocadas forças da GNR, bem armadas, nas entradas da vila que faziam ligação com aquelas aldeias, o que demoveu os “sublevados”. No dia 12 de Abril a GNR avançou para aquelas localidades, prendendo “os cabeças de motim da sublevação”, apreendendo-lhes espingardas de caça e os “respectivos cartuchos”.

Correram igualmente rumores de que “Dois Portos queria resistir e impedir o trabalho da brigada”, para aí se deslocou a força da GNR, mas não se tendo aí registado “a menor manifestação de desagrado”.

A partir de então o serviço daquelas brigadas “correu sem novidade”, retirando-se as forças da GNR de fora do concelho após o fim do levantamento das brigadas das vinhas neste concelho no dia 24 de Abril (11).

(1)    Ver:  obra colectiva “A-Dos-Cunhado – Itinerário da Memória”, ed. 2002 ;  “Guerra do Bacelo (…)”, recolha oral por António Moreira, Maria do Céu Nunes e António Vassalo, nas edições nº 1 e nº 2, de Janeiro e  Fevereiro de 1975, do jornal “Povo Jovem”;   SANTOS, Andrade, “Revolução e morte no Convento da Graça” in Badaladas de 8/1/2021;  relatório dos acontecimentos enviado pelo posto da GNR de Caldas da Rainha para o Ministério do Interior datado de 1 de Maio de 1935, existente no arquivo Nacional da Torres do Tombo (o autor agradece a oferta que lhe foi feita por João Flores da Cunha de uma cópia deste relatório);

(2)    relatório da GNR, acima referido;

(3)    relatório da GNR;

(4)    in Povo Jovem de Janeiro de 1975;

(5)    relatório da GNR;

(6)    in Povo Jovem de Fevereiro de 1975;

(7)    relatório da GNR;

(8)    in Povo Jovem de Fevereiro de 1975;

(9)    in Povo Jovem de Fevereiro de 1975;

(10)relatório da GNR;

(11)relatório da GNR.

1 comentário:

M. Graça disse...

Dr. Venerando, tem o documento da GNR, em imagem ou sabe a referência do mesmo na Torre do Tombo? Na Pró-Memória só temos em pdf e impresso e precisamos em ficheiro de imagem para um trabalho em curso. Obg.