(Duque de Wellington, aliás Lord Douro, regressa às Linhas de Torres - Foto Público)
O Público de hoje inclui uma grande reportagem sobre mais esse acontecimento comemorativo das "Linhas de Torres", cuja reprodução integral incluimos em baixo, como mais um documento importante para este ano do bicentenário:
"A cavalo pelas linhas onde começou a derrota de Napoleão
Lord Douro é descendente directo de Arthur Wellesley, o general britânico que entrou para a história como herói das guerras napoleónicas. No sábado, montou a cavalo e visitou as Linhas de Torres, o palco onde começou a derrota final de Napoleão. Foi uma viagem no tempo. Por Luís Francisco (texto) e Raquel Esperança (fotografia)
________________________________________
Um general inglês, tropas portuguesas e inglesas, mão-de-obra lusitana. A mais antiga aliança militar da Europa produziu os efeitos gloriosos há exactamente dois séculos, quando a terceira invasão francesa partiu os dentes às portas de Lisboa. Em apenas um ano, a visão de Arthur Wellesley (futuro duque de Wellington) e o suor dos portugueses criaram uma das mais notáveis linhas de defesa da História. Para comemorar o feito, decorre um extenso programa de celebrações, que no sábado passado incluiu a visita de Lord Douro, o descendente directo do homem que travou Napoleão. Tal como o seu antepassado, o nobre britânico montou um cavalo castanho (emprestado por um criador português de cavalos de raça árabe). Ao peito tinha o número 33, exactamente o mesmo do regimento do seu tetravô. E foi assim que largou para o Raid dos 200 Anos das Linhas de Torres Vedras, prova de resistência hípica que juntou algumas dezenas de participantes num percurso pelas fortificações erguidas no início do século XIX e que agora vão sendo recuperadas.
É uma viagem no tempo, um relance sobre o passado que em muito deve às tecnologias do futuro. "Os moinhos dão um jeitão", explica Clive Gilbert, vice-presidente da Bitish Historical Society of Portugal. A paisagem explica o resto: nas ventosas cumeeiras das serras do Oeste alinham-se os ciclópicos moinhos da era moderna, os geradores eólicos. Para os colocar no local e garantir a sua manutenção, os proprietários construíram estradas que rendilham os pontos mais elevados. E foi exactamente aqui que Wellington mandou construir as fortificações das Linhas de Torres.
São, na sua esmagadora maioria, redutos escavados nos pontos mais elevados, protegidos por fossos e parapeitos e munidos de seteiras para permitir a instalação de peças de artilharia. Foram construídos às dezenas (152 no total) num curto lapso de tempo e travaram as tropas napoleónicas lideradas pelo general francês Massena.
As invasões francesas
Um pouco de enquadramento. As ambições territoriais de Napoleão Bonaparte levaram-no a assinar um pacto com Espanha (em Outubro de 1807) e a invadir Portugal, cujo destino seria ser dividido pelas nações conquistadoras. A ideia era isolar ainda mais a Grã-Bretanha, histórica aliada dos portugueses. O primeiro acto foi pouco heróico para as cores lusas: os franceses chegaram, a família real fugiu para o Brasil (levando 15 mil pessoas consigo) e o general Junot tomou as rédeas do país.
Mas então a história começou a mudar. Os franceses não respeitaram a autoridade real de Carlos IV de Espanha e, perante a insatisfação popular, tiveram de concentrar forças no país vizinho. O desembarque em Portugal de Arthur Wellesley e 10 mil soldados britânicos permitiu expulsar os franceses, entretanto já acossados por vários focos de rebelião popular. Era o fim da 1.ª Invasão e a segunda, menos de ano e meio depois, quase não teve história.
Mas em 1810 os franceses voltaram à carga. Desta vez, porém, havia um plano específico para os travar antes de chegarem à capital. Wellington decidiu que as populações das Beiras retirariam das suas casas e propriedades, recolhendo-se a sul das Linhas de Torres. Para trás não deixaram nada que pudesse sustentar as tropas de Massena. A política da "terra queimada" era apenas um dos pormenores da estratégia. Outros eram a formação de linhas sucessivas de fortificações e o estabelecimento de sistemas de comunicação que permitiam saber rapidamente o que fazia o inimigo e movimentar as tropas para fazer face à ameaça.
Começou aqui a ideia de que a informação é poder, um princípio basilar da guerra moderna. O primeiro correspondente de guerra, no sentido mais actual do termo, foi Henry Crabb Robinson, que exerceu a sua actividade para o jornal The Times, primeiro na Alemanha e depois na península Ibérica, incluindo Portugal. Diz-se mesmo que, desconfiando dos relatos que lhe eram fornecidos pelos seus generais, Napoleão tinha espiões em Londres cuja missão era ler os jornais ingleses e reportar ao imperador o que realmente se passava no teatro de guerra...
A história a cavalo
Em Portugal, nos idos de 1810, o que se passava era um jogo de xadrez militar. Wellington organizou a defesa nas Linhas de Torres de forma exemplar. "Era um homem extraordinário", explica Clive Gilbert. "Capaz de ver o quadro geral, mas também de estar atento aos pequenos detalhes."
Clive, um inglês nascido em Lisboa - "sou alfacinha, da freguesia de Santa Isabel" -, fala durante o périplo por várias das fortificações instaladas na região. Mostra como as defesas estavam organizadas em duas linhas sucessivas, mas com alguns fortins pelo meio. "Neste [o número 28, tal como o 29], havia forças preparadas para retardar o inimigo se a primeira linha cedesse, permitindo o reagrupamento das milícias na segunda."
O corpo principal do Exército estacionava por perto, pronto a intervir nos pontos críticos. "As Linhas de Torres eram dinâmicas e essa foi a grande diferença", explica Gilbert. Os generais sabiam sempre o que se passava, porque os postos de observação comunicavam entre si através de um sistema de telégrafo visual (com balões e bandeiras) que utilizava os códigos da Marinha britânica. Um código ainda hoje tão secreto que, ao pedir informações para replicar o sistema no alto da serra do Socorro, as equipas portuguesas receberam apenas dois ou três exemplos concretos de mensagens.
Por esta altura, claro, o descendente de Wellington já não vai a cavalo. Ele cumpriu apenas o sector curto da prova, 20 km por montes e vales, menos de metade do que o grande general palmilhava todos os dias durante a guerra. "Já tinha visitado as Linhas, mas fazê-lo a cavalo é muito especial", assume Lord Douro, enquanto petisca qualquer coisa após a chegada. É por esta altura que lhe dizem que foi o vencedor da competição curta, uma vez que o seu cavalo era o que apresentava melhores índices físicos no final do percurso.
É claro que os outros dois "competidores" se limitaram a fazer-lhe escolta e o ilustre visitante não esconde isso. "Mas eu nem corri... Quem quer que tenha visto a velocidade a que passei percebe logo que não se pode usar essa palavra", graceja. Contou com um cavalo de excelente nível, cujo destino será agora o Qatar. "E era da mesma cor do do meu antepassado, o Copenhagen!"
Uma guerra moderna
"Foi uma sensação fantástica, cavalgar pelos locais onde o meu tetravô andou. Ele não deixou memórias, mas era muito prolífico em relatórios e cartas. Por isso, ao ver esta paisagem, foi como se estivesse a reviver o que ele contava." Bom, com algumas limitações... "Não gostei de ver tantos moinhos; sou a favor das energias renováveis, mas não em paisagens belas e históricas como esta. Na Escócia, acontece o mesmo..."
A boa disposição de Lord Douro (nome que adoptou entre os vários títulos honoríficos da família, retirando o "do" da denominação portuguesa) percebe-se. Quando lhe perguntam se a memória de um herói de guerra como Wellington é um fardo ou uma honra, não hesita: "Não pude escolher de quem descendo. Fiz a minha vida independente disso, nos negócios, na política [foi eurodeputado durante dez anos]. Mas a verdade é que me tem sido proporcionada a possibilidade de visitar e conhecer sítios fantásticos, por causa das homenagens ao meu antepassado."
Sempre com um sorriso para as objectivas dos fotógrafos, o herdeiro de Wellington não se coibiu de brincar com os espectadores que se aglomeravam junto de uma descida particularmente íngreme: "Portanto, vieram até aqui só para me verem cair!" Apesar de já não ser um jovem (fará 65 anos em Agosto), não só não caiu como cumpriu aqueles exigentes (e escorregadios) metros na sela, ao contrário de outros participantes, que desmontaram e levaram o cavalo pela arreata.
É tempo de regressar aos carros e continuar o périplo pelas Linhas de Torres, sempre encontrando pelo caminho alguns dos participantes da prova equestre. Entramos no forte do Alqueidão, onde escavações recentes começam a dar melhor uma ideia do que era este grande reduto a mais de 430 metros de altitude, em linha de vista com a serra do Socorro (395 metros), onde, horas depois, se inaugurou uma réplica do telégrafo visual que tanto ajudou no tempo das invasões francesas. "Belo trabalho dos engenheiros portugueses", realça Lord Douro, perante a velha calçada da estrada militar.
Foi neste e noutros cenários, como as quintas onde se instalavam os generais, que se decidiu a batalha que marcou o fim das ambições napoleónicas de dominar a Europa. Era uma guerra de antigamente. Uma guerra que parava no Inverno. Nessas alturas, os piquetes luso-britânicos e franceses encontravam-se. "Os franceses queriam jornais, os britânicos brandy...", ri-se Clive Gilbert. Já os generais ofereciam-se outros requintes. "Os franceses convidavam os britânicos para assistirem a peças de Moliére em Santarém; os britânicos recebiam os franceses para corridas de cavalos e jogos de futebol [um futebol arcaico, antecessor do actual]."
Era, de facto, uma guerra à antiga. Mas que lançou muitas das bases da guerra moderna. E o seu testemunho jaz, em tantos casos ainda escondido, nas serranias do Oeste. À espera que os portugueses o descubram".
Sem comentários:
Enviar um comentário